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TikTok e a nova ordem digital: entre proteção de dados e concorrência desleal

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A polêmica envolvendo o TikTok nos EUA e na Índia revela muito a respeito do novo alinhamento de poderes no mundo digital. Enquanto a guerra fria foi marcada pelo antagonismo entre duas potências nucleares, a guerra digital será marcada pelo antagonismo entre dois modelos de gestão do espaço virtual; aquele promovido pelos EUA desde a década de 90 e outro desenvolvido nos últimos anos sob a tutela de Xi Jinping na China.

O modelo estadunidense tem por característica a liberdade (quase) irrestrita, seja ela de expressão ou econômica. Embora a primeira emenda à Constituição dos EUA não se aplique às relações entre atores privados no país, empresas como Facebook e Twitter sempre pautaram o discurso online com base no conceito de liberdade de expressão que é próprio do constitucionalismo americano.

Do ponto de vista econômico, essas mesmas empresas tiveram suas atividades chanceladas por agências reguladoras num ambiente propício à formação de monopólios. Gigantes como Google, Amazon, Facebook e Microsoft controlam quase a totalidade do espaço digital em suas diversas dimensões.

Já o modelo chinês é, até certa medida, a antítese do primeiro. Em 2011, quando a primavera árabe ganhava impulso através das redes sociais, muitos achavam que a democracia finalmente se estabeleceria no oriente médio, a última fronteira da terceira onda de democratização. Hoje o espaço online foi contido por potências autoritárias graças à tecnologia de vigilância desenvolvida para controlar (e calar) opositores políticos com o apoio do Partido Comunista Chinês.

Esta tecnologia de vigilância digital foi então exportada para países da Ásia, do Leste Europeu, da África e até mesmo da América Latina. Ademais, empresas chinesas de tecnologia – como a gigante das telecomunicações Huawei – só prosperam se seguirem o manual de instruções da elite política chinesa. O modelo chinês, portanto, é marcado pelo controle governamental do ambiente digital, pelo dirigismo econômico e pela falta de privacidade digital.

Não demorou muito para que essas duas megapotências econômicas (e seus respectivos modelos de gestão digital) colidissem.

Em um mundo onde eleições presidenciais podem ser influenciadas por trolls russos e um genocídio pode ser desencadeado por perfis controlados pelas forças armadas, estar à frente da corrida digital tornou-se uma questão existencial.

Basta lembrar que a guerra fiscal entre Donald Trump e Xi Jinping é, ao menos em parte, uma retaliação dos EUA pelo roubo de patentes da indústria estadunidense por players chineses. A China, como afirma Matt Schiavenza e tantos outros, vivenciou o seu ‘momento Sputnik’ ao perceber a importância estratégica de superar os EUA em tecnologia, especialmente na área de inteligência artificial.

Mas para desenvolver algoritmos ‘inteligentes’ e mais avançados, é necessário coletar quantidades imensas de informações ou dados. A qualidade de um algoritmo não reflete necessariamente a sua técnica de programação, mas antes a quantidade de dados disponíveis para ‘treiná-lo’.

Por exemplo, pouco adianta criar um software de reconhecimento facial se não há fotos suficientes para esse algoritmo processar e, consequentemente, se aperfeiçoar. A falta de dados, ou sua seleção enviesada, pode produzir resultados até mesmo discriminatórios, como no caso da estudante negra do MIT que não teve seu rosto reconhecido por um software e só obteve sucesso após usar uma máscara branca.

Eis, então, o motivo pelo qual China e EUA se importam com a coleta de dados através de aplicativos como o TikTok: quem tiver mais informações sobre seus cidadãos (e os cidadãos do mundo) terá uma vantagem estratégica na corrida digital. E se, como dizem por aí, ‘data is the new oil’, então a China é a nova Arábia Saudita.

A população chinesa é quatro vezes maior do que a estadunidense, o que multiplica ao menos pela mesma grandeza as possibilidades de coleta de dados sobre o comportamento humano. Ainda mais, a lei chinesa é menos restritiva em relação à privacidade digital, abrindo espaço para práticas predatórias de coleta de dados e vigilância (tanto online quanto off-line).

Todas essas questões geopolíticas, econômicas e sociais vieram à tona nos últimos meses em razão da briga de narrativas em torno do TikTok.

O app, que foi criado em 2012 por uma companhia de tecnologia com sede em Beijing, virou um fenômeno global, principalmente entre usuários mais jovens (os quais, supostamente, tiveram seus dados coletados ilegalmente). O JOTA chegou a repercurtir a importância da proteção de dados de menores que usam o aplicativo durante o isolamento social.

Conforme o app angariava mais usuários e passava a competir com gigantes como Facebook, cresciam também as denúncias de violação de privacidade digital por parte da empresa controlada por investidores chineses.

Um usuário da plataforma Reddit aplicou técnicas de engenharia reversa no TikTok e descobriu que o aplicativo estava coletando mais dados do que se imaginava, incluindo o “uso de memória do celular, os demais aplicativos instalados, os endereços de IP, pontos de acesso de WI-FI, dados de GPS” e outros.

Logo após essa descoberta, hackers da comunidade Anonymous começaram uma campanha para que os usuários deletassem o aplicativo de seus celulares, denunciando o que acreditam ser “essencialmente um malware operado pelo governo chinês e parte de uma operação massiva de espionagem”.

O movimento contra o TikTok foi reforçado pela descoberta da Apple, após a atualização do sistema operacional iOS, de que o aplicativo estaria acessando dados de clipboard sem autorização dos usuários.

Desde então, a desconfiança em relação ao TikTok parece crescer dia após dia entre os líderes de governos democráticos. Após anos de tensão entre o governo dos EUA e a empresa chinesa de telecomunicações Huawei – o que levou diversos países a banirem a tecnologia 5G da empresa, incluindo mais recentemente o Reino Unido –, o TikTok parece ser apenas mais um episódio nesta guerra tecnológica.

No último 6 de julho, o Secretário de Estado dos EUA Mike Pompeo disse à Fox News que o governo estadunidense estava cogitando banir o aplicativo no país.

Em resposta, a empresa afirmou que é liderada por um CEO estadunidense e que jamais compartilhou dados com o governo chinês. Mas, ao que parece, a resposta não deu segurança ao governo de Trump, que continua estudando a possibilidade de um bloqueio.

Ainda assim, empresas que temem ver suas patentes de tecnologia roubadas pelo governo chinês já estão adotando medidas drásticas. No dia 11 de julho, a Wells Fargo determinou que seus funcionários deletassem o TikTok dos celulares da companhia. Uma determinação similar havia sido enviada pela Amazon aos seus empregados em razão dos “riscos de segurança” representados pelo aplicativo, mas a empresa veio a público informar que o e-mail foi enviado por engano.

Enquanto os EUA avaliam sua estratégia de médio prazo em relação ao TikTok, o governo indiano de Narendra Modi já deu o primeiro passo. A Índia, um dos maiores mercados de tecnologia do mundo, anunciou o banimento do aplicativo logo após 20 soldados indianos morrerem num embate com o exército chinês nos Himalaias. Embora o conflito militar possa ter antecipado a medida, em 2019 um tribunal da região de Madras já havia determinado o bloqueio do aplicativo em razão da coleta ilegal de dados de crianças.

A proibição do TikTok na Índia escancarou o outro lado da moeda do debate sobre proteção de dados e privacidade digital. Em 2019, o Instagram já havia anunciado que passaria a testar a função Reels (ou Cenas) no Brasil, reproduzindo os principais elementos popularizados pelo TikTok.

A estratégia de mercado do grupo empresarial controlado pelo Facebook já é conhecida. Quando não é possível absorver a concorrência (como no caso do WhatsApp e do Instagram), a alternativa é reproduzi-la (como no caso do Instagram Stories, uma funcionalidade originalmente introduzida pelo Snapchat).

Logo após o banimento do aplicativo pelo governo Modi, o Instagram começou a testar a função Reels também na Índia. O vácuo deixado pelo TikTok no gigantesco mercado indiano logo foi ocupado pela empresa estadunidense, que antes havia reproduzido suas principais funções numa prática de competição potencialmente desleal.

Ainda é cedo para dizer quais serão as consequências da desconfiança de grandes governos em relação à empresas de tecnologia chinesas. Mas o que salta aos olhos são as similaridades entre as duas estratégias. Embora o TikTok realmente tenha coletado vastas quantidades de informações sobre os seus usuários – muitas vezes sem consentimento –, especialistas acreditam que não há diferenças substanciais em relação às práticas do Facebook.

Na área da competição empresarial, os papéis parecem se inverter constantemente. Enquanto o governo chinês é acusado de roubar informações protegidas no ocidente para desenvolver tecnologias cada vez mais avançadas no oriente, empresas estadunidenses como o Facebook estão replicando funções desenvolvidas originalmente por empresas chinesas para melhor competir pelo mercado de novas tecnologias.

Fonte: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/tiktok-e-a-nova-ordem-digital-entre-protecao-de-dados-e-concorrencia-desleal-31072020

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