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Na última semana muito se discutiu a respeito da decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo1 a respeito de pedido de penhora de Bitcoin formulado por um credor. No caso o pedido restou negado em razão do exequente ter apresentado pedido genérico, deixando de comprovar a existência dos bens (Bitcoins) que pretendia penhorar, o que fez com que o pedido fosse indeferido sem que o Tribunal enfrentasse o mérito da questão sobre a possibilidade e forma de se penhorar um Bitcoin.
Antes de entrarmos na tecnicidade e características do Bitcoin e do sistema Blockchain, importante apresentarmos um breve panorama sobre o instituto da penhora à luz do Código de Processo Civil.
Penhora consiste em ato fundamental no processo executivo, destinado a definir o bem do devedor que irá ser expropriado (individualização) a fim de garantir o pagamento de uma dívida. Na prática, quando a penhora é realizada, os bens são retirados da posse do devedor para garantir determinado débito, conforme artigos 838 e 839 do Código de Processo Civil.
Individualizado o bem e realizado o ato de apreensão pela autoridade judicial, resta designado um depositário que ficará responsável pela guarda e conservação dos bens penhorados e seus acessórios, com a lavratura de competente termo de penhora. A partir de então, os bens afetados pela penhora tornam-se indisponíveis ao devedor, sendo certo que o devedor não poderá mais realizar, livremente, a transferência de domínio ou posse dos referidos bens.
Ocorre que, nas últimas décadas tivemos inúmeros avanços no desenvolvimento tecnológico, com o surgimento de novas tecnologias e o aperfeiçoamento de outras já existentes. Consolidou-se o uso da Internet, o início do comércio eletrônico, a ampliação da telefonia móvel, a popularização do e-mail, entre outros fatos relevantes, até chegarmos ao surgimento do Bitcoin.
Nas palavras do economista Fernando Ulrich, “Bitcoin é uma forma de dinheiro, assim como o real, o dólar ou o euro, com a diferença de ser puramente digital e não ser emitido por nenhum governo”2. O Bitcoin foi desenvolvido em 2008 por Satoshi Nakamoto3, quando da publicação do documento “Bitcoin: A Peer-to-Peer Eletronic Cash System”4, no qual seu criador, em apenas 09 páginas, apresenta os motivos que o levaram a desenvolver essa nova tecnologia e explica o seu funcionamento.
O sistema idealizado e desenvolvido por Satoshi Nakamoto permite a transferência de criptomoeda (no caso Bitcoin) de uma pessoa diretamente à outra, sem a necessidade de uma entidade verificadora da operação, papel desempenhado pelos bancos nas transferências regulares de moeda corrente.
O Bitcoin encontra-se estruturado sobre o sistema chamado Blockchain, uma espécie de livro-razão, que registra de forma pública (podendo ser verificado por qualquer pessoa) todas as operações já realizadas com Bitcoin, desde a sua criação. O sistema Blockchain, por ser distribuído, não permite a modificação de dados e afasta o risco do chamado “gasto duplo”, não sendo permitido que um mesmo Bitcoin seja enviado para mais de uma pessoa ao mesmo tempo, uma vez que a transferência de titularidade fica registrada na Blockchain de forma definitiva.
A ausência de um ente intermediário, tida como revolucionária pelos entusiastas do Bitcoin, é justamente o grande motivo de preocupação do meio jurídico, sobretudo no que tange ao suposto anonimato dos usuários e, consequentemente, a impossibilidade de rastreio e penhora desses ativos.
Contudo, diferentemente do que muitos imaginam, o sistema Blockchain utilizado pelo Bitcoin não confere sigilo e/ou anonimato absoluto a seus usuários, uma vez que, todas as transações efetuadas ficam registradas na Blockchain, sendo possível verificarmos todas as operações já realizadas, permitindo a rastreabilidade das movimentações realizadas. Mas, então, por qual razão se fala tanto do anonimato envolvendo o uso do Bitcoin?
À cada usuário de Bitcoin são atribuídas duas “chaves”, uma pública, que pode ser compartilhada com o público, e uma privada, que deve ser armazenada sob sigilo. A chave pública permite o rastreamento das operações na Blockchain, por sua vez a chave privada (criptografada) permite a identificação do usuário por trás da chave pública e acesso a todos os Bitcoins atrelados à chave pública.
Dessa forma, resta claro que ao usuário de Bitcoin não é conferido sigilo absoluto como propagado pela mídia, uma vez que com a tecnologia existente é possível rastrear o endereço IP em que cada chave privada foi utilizada e, então, se torna possível chegar ao usuário e consequente titular de Bitcoin.
Ademais, vale lembrar que o ingresso no mercado de Bitcoin se dá, majoritariamente, por empresas chamadas de “exchanges”, as quais permitem a seus clientes, por meio de seu sistema de intermediação, adquirir Bitcoin no mercado, além de oferecerem a possibilidade de manutenção dos Bitcoins sob sua custódia. As “exchanges” brasileiras, via de regra, possuem um cadastro completo de todos os usuários, inclusive com cópia de documentos pessoais e comprovantes de residência, facilitando a identificação de todos os usuários.
Da análise técnica e características do Bitcoin depreende-se que eventual ato de penhora deve seguir o mesmo procedimento aplicado aos bens móveis, uma vez que não há um órgão ou sistema centralizador, tal como o BacenJud que permita a rápida constrição desses ativos.
Por essa razão, entendemos que, apesar da dificuldade em razão da tecnologia envolvida e natureza imaterial deste ativo, uma vez conhecido que o devedor possui Bitcoin, o que poderá ser comprovado com a quebra do sigilo fiscal5, por exemplo, pode o exequente requerer expedição de ofício às “exchanges”, a fim de requerer informações sobre eventuais carteiras do devedor custodiadas pelas mesmas, a fim de que informem o saldo ao juízo, ou apresentarem informações sobre eventuais operações realizadas e dados cadastro do devedor, com as quais será possível rastrear o caminho dos Bitcoins pela Blockchain.
Apesar da possibilidade de rastrear as transferências de Bitcoins, entendemos que a maior dificuldade estará na materialização de eventual constrição e do efetivo acesso e transferência desse ativo ao credor, uma vez que tal medida poderá depender de acesso à chave privada (criptografada) de titularidade do devedor. Em uma analogia simples, seria o mesmo que localizar um bem dentro de um cofre, sem conhecer a combinação que permite a abertura e o acesso ao bem ali guardado.
À medida que o mercado de Bitcoin vai se tornando mais maduro, vai surgindo um movimento para regulação, o qual, apenas a título exemplificativo, poderia exigir que o titular do Bitcoin inclua em sua declaração de bens o número de sua carteira (chave pública) quando da aquisição, a data e horário da aquisição do ativo, o que permitiria a sua rastreabilidade pela Blockchain.
Os avanços tecnológicos nem sempre acontecem de forma ordenada e de acordo com a lei, cabendo ao legislador acompanhar o desenvolvimento da sociedade e garantir que o sistema jurídico esteja adequado à realidade social posta.
O debate é interessante e diante do crescimento e relevância do Bitcoin e outras criptomoedas, se faz necessário cada vez mais o aprofundamento na matéria para que possamos buscar mecanismos que atendam às necessidades da atualidade.
Fonte https://jota.info/artigos/a-rastreabilidade-e-penhora-de-bitcoins-09122017
Por Adriane Loureiro Novaes e Rodrigo Caldas de Carvalho Borges- Advogado. Master of Laws em Direito Societário pelo INSPER. Presidente da Comissão de Empreendedorismo e Startups da OAB Pinheiros e sócio do LLM – Lucas de Lima e Medeiros Advogados
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