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Pouco mais de cinco anos atrás, li um interessante artigo (“A lei num mundo sem fronteiras”)[1] do agora Presidente Executivo do Grupo Globo, em que se destacava: “Misturar o conceito de liberdade no ambiente da internet, incluindo o de liberdade de expressão, com a ideia de fim das fronteiras, sem incluir a lei, é sugerir que a pós-modernidade é anárquica, e, intencionalmente, levar à conclusão de que a lei não pode ou não deve regulá-la. A quem interessa esse movimento?”. O texto desde logo me chamou a atenção.
Nesta época, eu já estudava aspectos relacionados ao ainda pouco conhecido Direito ao Esquecimento, que começava a se difundir no meio acadêmico europeu à vista da reclamação formulada pelo cidadão Mario Costeja González junto à Agência Espanhola de Proteção de Dados (AGPD). A Agência, em 30 de setembro de 2010, e acolhendo parcialmente a pretensão, determinara que o Google removesse da internet dados ou links que conduzissem à figuração da informação questionada pelo interessado. A subsidiária espanhola e a matriz manejaram apelo à Suprema Corte Espanhola, a qual, após suspensão da instância, remeteu o processo ao Tribunal de Justiça da União Europeia, que, em 13 de maio de 2014, reconheceu expressamente o direito de solicitar a remoção de informações. Com isso, afirmou-se o Direito ao Esquecimento naquela jurisdição[2].
Neste interregno de quase quatro anos até que a matéria fosse julgada em definitivo, já se discutia, nos bastidores, a questão afeta à efetividade de uma potencial decisão que viesse a acolher o pedido. De um lado, alguns sustentavam que o acolhimento da pretensão seria ineficaz, na medida em que, em tese, a informação poderia vir a ser buscada e encontrada por meio de plataforma diversa. E, de outra parte, havia quem defendesse que a desindexação no âmbito de atuação da Google espanhola (google.es) não impediria que, efetuada a busca pela mesma empresa em qualquer outro país, a informação seria igualmente encontrada. A provedora, como sabido, e até porque inexistia outra instância recursal, veio a acatar a decisão e, ainda no mês de maio de 2014, inaugurou ferramenta na plataforma para que os cidadãos europeus pudessem efetuar, direta e pessoalmente, requerimentos de remoção.[3]
Pouco tempo depois, dois casos ocorridos na França ensejaram similar ordem para que a Google francesa e a matriz desindexassem os termos que são objeto daqueles processos. A particularidade, porém, é que, nesta decisão, foi determinada a exclusão referente a todas as extensões, não se limitando à Google francesa e sequer ao âmbito dos países integrantes da União Europeia. Foi determinada a remoção em termos universais.
A empresa recorreu sob o argumento de que houve ampliação da compreensão tirada do caso espanhol e que a aplicação universal quanto ao cumprimento da determinação traria implicações atinentes à soberania e à jurisdição, além de desconsiderar o balanceamento dos aspectos do direito à privacidade de acordo com os parâmetros legislativos de cada país. O caso será igualmente julgado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia e ainda não foi pautado.[4]
Neste período, muita coisa aconteceu. Embora não tenha ainda sido julgado este processo-referência que potencialmente reconhecerá a aplicação universal do Direito ao Esquecimento por força de decisão judicial proveniente da jurisdição europeia, o fato é que, em outros tantos países, foram já proferidas decisões que implicitamente afastaram a contenção territorial para que pudessem alcançar outras jurisdições.
Qualquer acadêmico de direito conhece, ou pelo menos deveria conhecer, o Princípio da Territorialidade, que, no Brasil, é expressamente reconhecido no art. 16 do Código de Processo Civil e no art. 1o do Código de Processo Penal, além de previsto em nosso sistema jurídico no art. 5o do Código Penal, e em relação a matéria trabalhista e tributária. Este princípio contempla poucas e predefinidas exceções de caráter legal e pode ser entendido como mecanismo que permite estabelecer e delimitar a área geográfica em que o Estado exercerá a sua soberania por meio da jurisdição.
Esse modelo clássico encontra-se ameaçado pela inexistência de fronteiras físicas em ambiente digital, de sorte que, a depender do específico caso concreto, bem possível é que a decisão judicial não revele qualquer efetividade se for limitada ao espaço territorial de atuação do órgão jurisdicional. De outro lado, o surgimento de novas demandas por força do desenfreado avanço tecnológico muitas vezes não permite, de fato, o prévio estabelecimento do parâmetro legislativo e, muito menos, da concretização de acordos internacionais, que, a rigor, constituiriam exigência normativa na doutrina tradicional.
Mas a ausência de lei, ao contrário do que antevia o articulista referido, não representa, nessas hipóteses, o estabelecimento de um padrão anárquico, na medida em que, reconhecidamente, o mundo caminha para a relativização de alguns aspectos atinentes à intransponibilidade de fronteiras sem que tal fato comprometa a organização dos Estados e a sobrevivência da civilização. São os efeitos diretos do livre intercâmbio e da interconexão, agora também de dados, que o mundo convencionou chamar de globalização.
Reconhecendo esta tendência e esta necessidade, no ano de 2012, foi fundada a Internet & Jurisdiction Policy Network[5], também conhecida simplesmente como “I & J”, que consiste em rede global de políticas multissetoriais com a finalidade de abordar as complexas questões concernentes à Internet transfronteiriça frente às jurisdições nacionais.
A entidade visa a facilitar o processo de política mundial para permitir a cooperação transnacional e preservar o caráter global da Internet. Desde sua criação, tomaram parte da “I & J” mais de duzentas entidades-chave de diferentes grupos de todo o mundo, incluindo-se governos, empresas de internet, comunidade técnica, sociedade civil, academia e organizações internacionais.
Em seu site oficial, encontra-se ampla base de dados em que podem ser encontradas diversas ocorrências ao redor do mundo em que houve a necessidade de atuação extraterritorial. O último caso ali listado diz respeito à decisão emanada da Suprema Corte do Canadá que, afastando o apelo do Google, manteve a decisão da Corte da Colúmbia Britânica e autorizou a aplicação universal da ordem como necessária ao atingimento de seu objetivo.[6]
Reconheço que a matéria é controvertida e que há quem sustente, com sólidos fundamentos jurídicos, que decisões desta natureza efetivamente esbarram nas noções básicas relativas à soberania e à jurisdição. De outra parte, o direito, como um todo e por essência, há de revestir-se de efetividade, sem a qual, obviamente, sequer há razão de existir.
Se uma decisão não é capaz de atingir ampla e total eficácia, então teria sido melhor, em termos práticos, que esta decisão sequer tivesse sido proferida. De outro lado, também não há que se argumentar com a necessidade de prévia adaptação legislativa ou anterior estabelecimento de acordos internacionais, haja vista que esses intrincados e morosos processos não atendem a premência de uma vastíssima gama de situações.
Sob este aspecto, pois, parece justificar-se o sacrifício do cumprimento da exigência formal se estão em jogo princípios e fatos relevantes, muitas vezes capazes de malferir a dignidade humana, além de outros tantos direitos afetos à personalidade.
Não se trata, evidentemente, de dotar os juízes de superpoderes. Muito pelo contrário. Para esta espécie de atuação excepcional, é preciso que exista causa plenamente justificada de modo que a ineficácia da decisão possa potencialmente ensejar consequências irremediavelmente lesivas. E a lógica para chegar-se a essa conclusão é proceder-se ao correto balanceamento da equação com base na valoração dos princípios vigentes.
Sendo assim, se não for constatada a imprescindibilidade da extraterritorialidade para a eficácia de uma determinada decisão, deverá ela, por óbvio, produzir efeitos espaciais restritos. De outra parte, se houver perigo e se inexistir outra forma de alcançar o resultado almejado de modo plenamente eficaz, deverá o juiz atuar de forma universal.
Espera-se que a boa e recíproca colaboração entre as múltiplas jurisdições, aliada à inafastável e necessária compreensão das novas exigências do mundo moderno, possa pavimentar as próximas etapas do desenvolvimento desta matéria.
Fonte http://www.lexmachinae.com/2017/12/15/o-juiz-universal/
Por Viviane Maldonado
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