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IA transformará o Direito, mas o direito transformará IA?

Publicado em
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Direito e Inteligência Artificial: primeiros passos
Carlos Affonso Souza
Vinicius Padrão

O que é ser inteligente? A capacidade de armazenar informações e aplicá-las a um determinado ambiente ou contexto para a solução de problemas é um bom ponto de partida. Foi assim que a humanidade descobriu o fogo e embarcou em viagens espaciais. Fascinadas por sua própria inteligência, as pessoas se puseram a investigar os padrões de seu funcionamento, tornando possível replicar o processo criativo de tomada de decisões. É aqui que surgem os desafios da chamada Inteligência Artificial (IA).

O termo é usado para designar tanto um campo de estudo quanto para tratar da capacidade de softwares de imitar e, eventualmente, até mesmo aperfeiçoar o exercício cognitivo humano. Não existe consenso sobre a conceituação de IA e a sua origem, mas usualmente é feita referência ao artigo Computing Machinery and Intelligence, no qual, em 1950, Alan Turing introduziu um teste para determinar a aptidão de máquinas para exibir comportamentos inteligentes equivalentes aos dos humanos.

No teste de Turing dois seres humanos e uma máquina projetada para fornecer respostas são selecionados e separados. Um dos homens atuará como juiz e, conversando com os outros dois envolvidos, precisará distinguir de forma precisa qual dos interlocutores é a máquina. Em 2014, um programa “passou” na avaliação: simulando um menino ucraniano de 13 anos, o chatbot Eugene Goostman convenceu 33% dos jurados de que era humano.

O caso é apenas um de diversos feitos que apontam para a crescente sofisticação da inteligência artificial. Em 1997, o supercomputador Deep Blue, criado pela IBM, derrotou o então campeão mundial de xadrez Garry Kasparov. Ainda nos desafios de tabuleiro, recentemente a Google desenvolveu um software deGo, jogo de origem chinesa considerado um dos mais estratégicos do mundo. O AlphaGo venceu quatro vezes o campeão mundial da modalidade.

O quanto inteligente é uma máquina que supera campeões humanos em jogos de estratégia? Se por um lado o feito é impressionante, eles servem pouco para a aplicação dessa mesma inteligência nas mais variadas áreas de interação humana. É aqui que entra em cena a percepção do quanto o nosso dia-a-dia já começa a ser povoado por implementações de inteligência artificial. Assistentes digitais que reconhecem “linguagem humana”, recomendações de séries, músicas, textos e produtos com base em uma customização cada vez mais apurada, além do cálculo de tarifas dinâmicas em aplicativos de carona são apenas alguns exemplos.

Ainda que o termo inteligência artificial englobe diversas funcionalidades e uma pluralidade de conceitos, é possível então pontuar algumas características gerais: capacidade de raciocínio por meio da aplicação de regras lógicas a um conjunto de dados disponíveis, reconhecimento de padrões, sejam esses visuais ou comportamentais, e o aprendizado por meio de seus erros e acertos para potencializar a eficácia de suas ações.

Entender os desafios da inteligência artificial é uma tarefa que naturalmente congrega uma diversidade de conhecimentos e especialidades. Trata-se de uma demanda multidisciplinar e que, no que se relaciona com o debate sobre a sua regulação, dependerá cada vez mais de uma perspectiva multissetorial: governos, comunidade técnica, setor privado e sociedade civil precisarão estar plenamente envolvidos para garantir que as oportunidades trazidas pelo desenvolvimento de IA não seja prejudicadas pelos riscos que naturalmente ela representa.

Qual seria o papel do Direito no desenvolvimento da inteligência artificial? Aqui seguem alguns pontos que procuram desenhar uma primeira aproximação ao tema.

  1. O Direito não está sozinho na disputa pelo futuro da inteligência artificial. Qual será a força determinante em afirmar o rumo do desenvolvimento de inteligência artificial? Partindo de um cabo-de-guerra de quatro pontas, inspirado nos estudos de Lawrence Lessig no final dos anos 90, é possível reconhecer quatros forças regulatórias em disputa para definir um comportamento: a normatividade do Direito, os incentivos econômicos, a aceitação social e a arquitetura, entendida como a programação de softwares que tornam um comportamento facilitado ou restringido. O Direito, manifestado na edição de leis, decisões judiciais e contratos, precisará definir o seu espaço na disputa com vetores que podem impulsionar a inteligência artificial em certa direção antes mesmo da identificação do problema pelos meios jurídicos.
  2. O que aprendemos com a regulação da Internet? O jogo de gato e rato entre o Direito e a inovação tecnológica não é novo. Como lembra Urs Gasser, para enfrentar os desafios impostos pela inteligência artificial será relevante ter em mente as lições aprendidas sobre outros ciclos de inovação. Dessa forma, o Direito deve impulsionar a inovação, garantindo as liberdades que a tecnologia propicia, ao mesmo tempo em que impede que essas liberdades sejam erodidas no futuro. Essa é a mesma questão que está no cerne de debates regulatórios que marcaram atual década como o relativo à neutralidade da rede e o sistema de responsabilidade civil de provedores por atos de terceiros. A regulação, assim percebida, não é uma restrição à liberdade, mas sim a sua garantidora.
  3. É preciso regular agora? A discussão sobre regular a tecnologia ex ante ou esperar os seus efeitos para então promover uma avaliação ex post também é aplicável ao desenvolvimento de inteligência artificial. Quais seriam as condições que, uma vez identificadas, acionariam o gatilho de uma regulação ex ante que impeça a explosão de danos e lesões a direitos fundamentais? Como as leis em vigor podem dar conta dos desafios que despontam no horizonte? Nesse particular as leis em vigor sobre responsabilidade civil, relações de trabalho, tributação, coleta e tratamento de dados pessoais, por exemplo, serão submetidas ao teste. Em muitos casos, adaptações serão feitas para tratar de temas pertinentes à inteligência artificial.
  4. Diferentes setores demandarão diferentes respostas. Qualquer tentativa de consolidar um conceito abrangente de inteligência artificial esconde o fato de que a sua implementação é sempre distribuída e distinta de acordo com a sua área de aplicação. Em setores regulados é esperado que as implementações de IA causem o efeito habitual: proibições, bloqueios e suspensões serão editadas até que, paulatinamente, a regulação seja, quando necessário, alterada para dar conta das inovações tecnológicas. De qualqurer forma, é importante ter em mente que a aplicação de IA na área da saúde trará uma regulação diferente daquela que precisará ser promovida, por exemplo, no setor de energia elétrica.
  5. Preocupação com direitos fundamentais não deve ser uma tarefa apenas de profissionais do Direito, mas também de programadores. A noção de que a expertise técnica para o desenvolvimento de IA pode prescindir de qualquer preocupação com direitos fundamentais apenas asseverará os aspectos negativos da tecnologia. Programadores precisam cada vez mais compreender que, ao lidar com dados pessoais, um programa pode gerar resultados discriminatórios, que reforçam a exclusão social e o acesso às oportunidades trazidas pela própria tecnologia. Nesse sentido, a retórica de que algoritmos seriam um puro exercício matemático de programação falha em perceber que sempre existe alguém que progama, de alguma forma e com algum propósito. Perguntar sempre quem, como e para que existe uma inteligência artificial ajuda a entender o papel do Direito para evitar que robôs venham a proliferar uma visão de mundo particular e valores não inclusivos.
  6. Diferentes países, diferentes regulações. A questão da jurisdição, marcante nos debates sobre governança da Internet, é replicada na discussão sobre o futuro da inteligência artificial. Com cada país ou região traçando suas estratégias regulatórias haverá uma natural disputa sobre qual seria a melhor alternativa. Ao mesmo tempo, regulações contraditórias farão com que empresas que atuem globalmente tenham que adequar as suas aplicações de IA à legislação local. Nesse sentido, temas como transferência internacional de dados e efeitos extra-territoriais de decisões judiciais nacionais estarão mais uma vez em pauta.
  7. O papel da academia. Quanto mais o debate sobre inteligência artificial estiver inserido nao dia-a-dia e a imprensa em geral reportar sobre as principais discussões, mais importante será o papel da academia em traduzir esse diálogo, evitando generalizações e entendimentos superficiais que espalhem situações de pânico moral. A experiência da última década mostrou como políticos usam o desconhecimento sobre como funciona a Internet para promover pautas de restrição à liberdade de expressão, em especial em casos de comoção popular. Será cada vez mais necessário que a comunidade técnica não apenas dialogue entre si, mas que se faça um esforço para justamente agora, no nascedouro da implementação massiva de IA, não sejam repetidos conceitos equivocados que promovam uma regulação inadequada.
  8. O Direito será codificado. O desenvolvimento de inteligência artificial representa uma janela para o futuro do Direito. Máquinas autônomas que contratam, que tomam as mais diversas decisões, impulsionam uma transformação essencial sobre a forma pela qual se pensa o Direito. Tome-se o exemplo da boa-fé, que na sua versão subjetiva é caracterizada como um estado de consciência do agente sobre dada situação. Sabia ele, ou não, do vício que macula a posse? Na seara contratual, a boa-fé tem sido progressivamente objetivada, deixando de importar em uma viagem psicológica para afirmar a conformação de deveres objetivos de conduta que as partes devem guardar. A objetivação desses deveres, que nem mesmo precisam estar previstos no contrato, representa o primeiro passo em direção à sua automação. Deveres contratuais, como o respeito à boa-fé objetiva (dever de informar, de cuidado, de sigilo) poderão ser programados.

Essas são apenas algumas das muitas questões que o desenvolvimento de inteligência artificial traz para a reflexão e a prática do Direito. De outro lado, a depender das respostas encontradas pelo Direito, a equação entre os riscos e as oportunidades proporcionados pela IA pode ser alterada. O Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio) tem se dedicado ao estudo do tema através da organização de eventos, publicações e a promoção de cursos. Nas próximas semanas publicaremos uma série de artigos sobre os mais diversos tópicos envolvendo a interface entre IA e o Direito: da propriedade intelectual ao risco de desenvolvimento, da proteção dos dados pessoais à criação de personalidade jurídica para robôs inteligentes.

Carlos Affonso Souza – Professor da Faculdade de Direito da UERJ e da PUC-Rio. Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio).

Vinicius Padrão – Pesquisador no Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio).

Fonte: https://jota.info/artigos/ia-transformara-o-direito-mas-o-direito-transformara-ia-26092017

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