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Como regular as aplicações de inteligência artificial?

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As diferentes formas de se tratar aplicações de AI, as quais variam conforme a cultura e valores de cada sociedade

O Estado brasileiro não consegue acompanhar de maneira adequada os avanços das novas tecnologias. O que frequentemente observamos é um grande lapso temporal separando a popularização da utilização de novas dinâmicas disruptivas e a regulamentação legal e infralegal de tais práticas sociais e econômicas. Três são os exemplos que ajudam a corroborar a mencionada afirmação: (i) em março foi publicada a Lei nº 13.640/2018, que alterou as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana para regulamentar o chamado “transporte remunerado privado individual de passageiros”, com 4 anos de atraso em relação à chegada do Uber ao Brasil1; (ii) pouco mais de um mês depois, em abril, o CMN regulamentou, através das resoluções nº 4.656 e nº 4.657, as fintechs de crédito, com 3 anos2 de atraso em relação aos primeiros empréstimos concedidos pela Creditas, uma das empresas referência em tal segmento3; e (iii) o Congresso brasileiro ainda debate a respeito de uma lei de proteção de dados, ao tempo que diversos vazamentos já ocorreram no país4. Em paralelo, a partir do dia 25 de maio, a GDPR passou a vigorar em diversos países da Europa5.

Internacionalmente, diversas aplicações da AI (artificial intelligence) crescem sem que um marco legal brasileiro sequer esteja em vias de ser publicado. Assim sendo, o papel da doutrina é fundamental para pavimentar os debates que naturalmente surgirão com o desenvolvimento de tais usos. Vale lembrar que questões relacionadas à accountability dos algoritmos já ensejam debates relevantes nos Estados Unidos.6

Quando Alan Turing disse acreditar que chegaríamos ao novo milênio falando sobre ‘máquinas pensantes’ com naturalidade, ele não poderia estar mais certo. No entanto, encontrar uma definição precisa para AI é um grande desafio. No fundo, algoritmos de machine learning podem, grosseiramente, ser considerados ferramentas capazes de aumentar sua precisão, ou seja, “de aprender”, a partir da utilização de grande volume de dados (input), fornecendo, em troca, algum tipo de resposta otimizada (output), como, por exemplo, rankings, avaliações ou diagnósticos, de acordo com o procedimento pré-programado.

Indefinições à parte, o que se constata atualmente é uma verdadeira explosão cambriana de produtos e aplicações que se beneficiam das oportunidades que a inteligência artificial pode ofertar. Tais dinâmicas se espalham nos mais diversos setores, como educação, saúde, indústria em geral, jurídico e agronegócio. Cabendo vislumbrar, desde já, que, caso não haja um marco legal único para tal tecnologia, o tema poderá acabar sendo regulado e regulamentado por diferentes instrumentos normativos setoriais e ainda sofrer reflexos de normas internacionais. Assim, no âmbito da proteção de dados, a ausência de um marco legal único vem oportunizando que diplomas como o plano de internet das coisas7, o decreto de transformação digital8, o plano de segurança da informação9 e o próprio Bacen tratem do tema, além dos reflexos das legislações estrangeiras (GDPR) e da atuação ativa do Ministério Público10fundando sua prática em outras normas do ordenamento jurídico pátrio.

Além disso, conforme sistemas de inteligência artificial vêm sendo aplicados, também se descobrem os riscos de violações a direitos. Diante desse panorama, alguns países iniciaram as discussões sobre como planejar o desenvolvimento da aplicação dessa nova tecnologia. Em que pesem os países divergirem entre si sobre como tratar o tema, a análise das propostas dos ordenamentos alienígenas pode ser importante farol para se refletir o tema no Brasil.

Neste sentido, nota-se que os Estados Unidos apresentam grande preocupação com a utilização responsável da tecnologia11. O principal objetivo da proposta norte americana parece ser alcançar um equilíbrio entre a aplicação da inteligência artificial de forma segura, evitando assim riscos e violações a princípios e aos direitos humanos, sem com isso bloquear a inovação. Para alcançar este objetivo, o relatório “Preparing for the Future of Artificial Intelligence12 aponta que serão necessários investimentos crescentes na educação da sociedade para lidar com a nova tecnologia e para desenvolver e recrutar talentos. Havendo, assim, um grande destaque para pesquisadores de AI, bem como na capacitação em geral da força de trabalho, para lidar com os impactos econômicos gerados pela mesma.

O sistema norte americano tradicionalmente tende a confiar na força do mercado quando se trata do assunto regulação. O cerne da presente discussão norte-americana está na adequação das regulações já existentes aos riscos que serão gerados pelo uso de AI. A única nova regulação até o momento é a de Nova York13 (Lei Nº 1696-A14), que almeja garantir a transparência dos algoritmos usados para tomada automatizada de decisões da polícia, do Judiciário e de outros órgãos governamentais da cidade. Infelizmente, o escopo da lei é limitado. O mesmo trata apenas dos algoritmos utilizados pela Administração Pública, silenciando quanto à sua utilização pela iniciativa privada, além de meramente prever a criação de uma força tarefa temporária que tem como missão desenvolver um relatório com sugestões de possíveis ações a serem tomadas. Verifica-se, portanto, que se trata de uma iniciativa ainda bastante tímida em termos regulatórios.

Nessa temática, ainda é muito cedo para saber se o escândalo gerado pelo caso da Cambrigde Analytica, que por meio de práticas abusivas, conseguiu coletar dados pessoais de 50 milhões de usuários do Facebook nos EUA, cruzando-os de modo a identificar e influenciar pretensões de votos15, poderá alterar esse posicionamento.

Nos Estados Unidos, os progressos nos estudos de AI são feitos principalmente por universidades, ou iniciativas privadas. Dessa forma, utiliza-se uma boa parcela das normas do livre mercado e da livre concorrência. Por outro lado, pesquisas de longo prazo, que atraem menos interesses por parte da iniciativa privada, tendem a ser financiadas pelo governo.

De modo geral, em solo norte americano, observa-se expressiva preocupação com questões de responsabilidade, justiça e transparência. Estas limitam boa parte da aplicação da AI na sociedade. O relatório apresentado pela Casa Branca, no ano de 201616, preocupa-se energicamente com a resolução destes problemas, de forma a futuramente permitir ampla aplicação da AI. Tais questões reforçam a relevância da educação ética dos programadores e da sociedade. Além disso, enfatiza-se a necessidade de inclusão de maior diversidade nos ambientes tecnológicos, de modo a refrear o surgimento de distorções ou discriminações de gênero, raça, nacionalidade etc. nos sistemas de AI. Feitas essas breves considerações, pode-se concluir que os Estados Unidos visualizam os benefícios econômicos e sociais que podem advir da aplicação de AI, mas permanecem tímidos quanto à sua efetiva aplicação devido aos riscos.

A Europa, por sua vez, embora não tenha ainda apresentado planejamento específico para o uso de AI, vem demonstrando uma tendência para a regulação precoce das novas tecnologias, em consonância com a tentativa de proteger os denominados “valores europeus”. Essa tem sido a abordagem tomada pela França17, em seu plano de inteligência artificial, e pela Europa como um todo, ao tratar a questão dos robôs18.

Quando se trata da formulação de princípios próprios para combater os riscos gerados pelas novas tecnologias, constata-se que os europeus são mais protetivos e mais ativos do que os americanos. Além disso, diferentemente dos americanos, o desenvolvimento de diretrizes relacionadas à aplicação de AI e ao uso de robôs vem sendo liderado pela iniciativa pública, a qual demanda uma agenda de pesquisas que parte tanto dos setores privados, quanto das universidades.

Passando para uma análise da experiência asiática, há que se frisar o planejamento chinês19, apresentado em 2017, que pretende desenvolver e aplicar AI a partir de metas ambiciosas até 2030. O plano estabelece o uso de AI como fundamental para o desenvolvimento econômico e para a segurança nacional das próximas décadas. A China pretende se tornar uma potência neste segmento, liderando essa transformação.

O governo chinês vê claramente os benefícios que a inteligência artificial pode trazer para diversos problemas sociais, tais como o envelhecimento populacional e questões ambientais. Entende-se, portanto, que o uso de AI pode melhorar substancialmente a qualidade de vida da sociedade. No entanto, diferente do planejamento americano e europeu, no chinês não há qualquer apresentação de preocupações relacionadas à proteção de princípios ou valores, – como a privacidade ou liberdade –, de seus cidadãos. O planejamento demonstra apenas a ânsia de se tornar o líder mundial no tratamento da AI, deixando de lado a cautela com potenciais violações principiológicas advindas do uso de tal tecnologia.

O presente artigo não pretende realizar qualquer julgamento sobre qual seria o melhor tipo de regulação relacionada ao uso de AI, mas apenas analisar que há diferentes formas de se tratar as aplicações de AI, as quais variam conforme a cultura e os valores de cada sociedade. As sociedades orientais vêm demonstrando grande otimismo em relação à tecnologia em geral, e à inteligência artificial em específico, muito distinto do pessimismo e temor sentido pelas sociedades ocidentais. Possivelmente essa distinção em relação aos efeitos de tal tecnologia decorre de diferenças culturais, filosóficas e ideológicas.

O Brasil, como país que ainda não iniciou seu planejamento e desenvolvimento da regulação relacionado ao uso de AI pode e deve se aproveitar dessa aparente desvantagem. É fundamental o estudo das abordagens feitas por outras nações, utilizando tais pontos com o intuito de encontrar o caminho mais adequado à nossa realidade. Além disso, é essencial encurtar os gaps existentes entre o uso de novas tecnologias e respectivas regulações e regulamentações nacionais. O Direito brasileiro precisa se tornar exponencial e acompanhar o timing da nova realidade, oportunizando uma maior proteção de seus cidadãos sem deixar de estimular a inovação e o empreendedorismo.

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4 Um dos exemplos mais recentes desses vazamentos ocorreu com a empresa Netshoes que teve mais de 2,5 milhões de dados de clientes do e-commerce vazados. Disponível em: <https://www.tecmundo.com.br/seguranca/129428-vazamento-netshoes-continua-totaliza-dados-2-5-milhoes-clientes.htm>. Acesso em 02 jun. 2018.

5 General Data Protection Regulation – “(…) a GDPR se aplica a coleta de dados pessoais de pessoas naturais que se encontram na União Europeia, independente da sua nacionalidade, cidadania, domicílio ou residência.

Adicionalmente, em suma, será verificado com este estudo, que, caso uma empresa brasileira, de uma forma ou de outra, colete, processe ou receba dados pessoais de pessoais naturais localizadas na União Europeia, independente da sua nacionalidade, incluindo dados de consumidores, colaboradores, dados financeiros, ou ofereça serviços para algum dos 28 países do bloco europeu, poderá estar sujeita a jurisdição prescrita pela norma”. Disponível em: <https://baptistaluz.com.br/institucional/o-impacto-da-regulacao-geral-de-protecao-de-dados-da-ue-em-empresa-brasileira/>. Acesso em 02 jun. 2018.

7 Disponível em: <https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/conhecimento/pesquisaedados/estudos/estudo-internet-das-coisas-iot/estudo-internet-das-coisas-um-plano-de-acao-para-o-brasil>. Acesso em 02 jun. 2018.

8 DECRETO Nº 9.319, DE 21 DE MARÇO DE 2018. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9319.htm>. Acesso em 02 jun. 2018.

9 Disponível em: <http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/19863>. Acesso em 02 jun. 2018.

10 Comissão de Proteção dos Dados Pessoais do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) instituída pela Portaria Normativa PGJ nº 539, de 12 de abril de 2018. Disponível em: <http://www.mpdft.mp.br/portal/index.php/conhecampdft-menu/nucleos-e-grupos/comissao-de-protecao-dos-dados-pessoais>. Acesso em 02 jun. 2018.

11 EUA preparing_for_the_future_of_artificial intelligence.Executive Office of the President National Science and Technology Council Committee on Technology.2016. Disponível em: <https://obamawhitehouse.archives.gov/sites/default/files/whitehouse_files/microsites/ostp/NSTC/preparing_for_the_future_of_ai.pdf>. Acesso em 02 jun. 2018.

12 Idem.

15 Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/20/tecnologia/1521582374_496225.html>. Acesso em 02 jun. 2018.

16 EUA preparing_for_the_future_of_artificial intelligence.Executive Office of the President National Science and Technology Council Committee on Technology.2016. Disponível em: <https://obamawhitehouse.archives.gov/sites/default/files/whitehouse_files/microsites/ostp/NSTC/preparing_for_the_future_of_ai.pdf>. Acesso em 02 jun. 2018.

17 VILLANI, Cédric, “FOR A MEANINGFUL ARTIFICIAL INTELLIGENCE: TOWARDS A FRENCH AND EUROPEAN STRATEGY”. Disponível em: <https://www.aiforhumanity.fr/pdfs/MissionVillani_Report_ENG-VF.pdf>. Acesso em 02 jun. 2018.

18 Disponível em: <http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//TEXT+REPORT+A8-2017-0005+0+DOC+XML+V0//PT>. Acesso em 02 jun. 2018.

19 “A Next Generation Artificial Intelligence Development Plan”. Disponível em: <https://chinacopyrightandmedia.wordpress.com/2017/07/20/a-next-generation-artificial-intelligence-development-plan/>. Acesso em 02 jun. 2018.

 

 

Por Bruno Feigelson e Carolina Braga

Fonte: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/como-regular-as-aplicacoes-de-inteligencia-artificial-07062018

 

 

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