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Estamos lidando com uma situação bastante peculiar
Até há poucos anos, viajar em um carro programado por um “piloto automático” significava apenas que a velocidade do veículo se manteria até que algum pedal fosse acionado pelo motorista. Contudo, já é possível presenciar o uso de ferramentas que evitam a fadiga dos motoristas ou auxiliam a condução de diversas outras formas, como sistemas que impedem a mudança repentina e perigosa de faixas. Mas nenhuma inovação chama tanto a atenção – e promete tantas mudanças socioeconômicas – como o lançamento de veículos completamente autônomos no mercado, capazes de conduzir em trajetos inteiros por conta própria.
A utilização dessas tecnologias tem como objetivo principal aumentar a segurança dos sistemas, passageiros e tráfego, e, acima de tudo, reduzir acidentes de trânsito. Até o momento, as utilidades têm se desenvolvido na prevenção de situações de risco envolvendo veículos1. A realidade, no entanto, demonstra que podem ser levantadas questões jurídicas sobre o tema, uma vez que veículos autônomos podem não ser plenamente previsíveis e ainda são passíveis de ser afetados por variáveis como, por exemplo, condições das vias e alto tráfego, o que impossibilitaria a prevenção completa de ocorrências. Recentemente, um acidente envolvendo um veículo supostamente autônomo iniciou uma discussão a respeito de quem deveria ser responsabilizado pelos danos causados à vítima e seus familiares2.
Entretanto, o debate jurídico sobre o tema não é novidade. Buscando estudar a matéria e definir recomendações éticas para a sua regulação, o governo alemão estabeleceu uma comissão vinculada ao Federal Ministry of Transport and Digital Infrastructure (Ministério Federal do Transporte e Infraestrutura Digital). Em junho de 2017, a comissão concluiu um relatório3apontando 20 questões éticas relacionadas à adoção dessas tecnologias em veículos, por parte das fabricantes, e à sua regulamentação, por parte dos governos. Entre outras, as principais recomendações são: a) a ideia de que os problemas envolvem uma “percepção” avançada de máquinas e uma atribuição, a estas, de um poder de tomada de decisões; b) ponderação a respeito da dependência tecnológica do ser humano versus a segurança proporcionada pelos sistemas autônomos; c) que a programação destes sistemas priorize a prevenção de acidentes; e d) se houver necessidade de uma decisão ser tomada pela máquina, que nunca seja feita no sentido de optar por uma vida em detrimento de outra.
As reflexões, contudo, vão além do campo ético proposto pelo relatório e alcançam a esfera jurídica, conforme outros autores propõem4, e o campo fático mostra essa necessidade. Assim, tal disrupção pode afetar questões tradicionais de direito, sendo a mais importante delas a responsabilidade civil.
Para abordar tais consequências, Kyle Colonna (2012) demonstra que esta não é a primeira vez que a humanidade tem de se preocupar em resolver controvérsias jurídicas que envolvam máquinas autônomas, citando como exemplos o caso de acidentes com elevadores e pilotos automáticos de aviões, embarcações e trens5. Adicionalmente o autor compara a disrupção causada pelos carros autônomos ao cenário enfrentado pelas usinas nucleares em meados da década de 19506. Naquela época, esta indústria enfrentou imbróglios relacionados à responsabilização por acidentes envolvendo reatores de energia nuclear – se por um lado a tecnologia era incentivada pelos benefícios que traria, o setor privado era reticente em se aventurar nesse mercado, pois o risco de acidentes era alto e a responsabilidade poderia ser muito onerosa.
A solução encontrada foi garantir a esses agentes um tratamento diferenciado, que culminou na lei chamada de Price-Anderson Act. Além de garantir vantagens de cunho processual em litígios envolvendo acidentes nucleares causados por usinas, estabeleceu uma forma de mitigação de prejuízos estruturada em uma “dupla camada”: a primeira consiste na obrigação de que empresas contratem seguros, mas sua cobertura mínima obrigatória lhe seria pouco onerosa; a segunda, por sua vez, prevê um “fundo”, mantido em uma espécie de consórcio das empresas autorizadas a operar nesse mercado, de onde sairiam os recursos necessários para saldar eventuais indenizações. De acordo com Colonna (2012), essa é uma boa solução para a questão da responsabilização das fabricantes de carros autônomos, que eventualmente podem sofrer com ações judiciais envolvendo falhas em seus produtos.
Para entender a necessidade de desenhar uma proteção especial aos fabricantes, retornemos às teorias de responsabilidade civil. Num primeiro caso, consideremos a atribuição de responsabilidade ao “motorista” ou proprietário do carro: sabendo da sua responsabilização por falhas de sistemas autônomos, potenciais compradores desses carros pensariam duas vezes antes de comprá-los; em seguida, ressalte-se que é ainda juridicamente impossível atribuir responsabilidade às máquinas. As duas situações, citadas por Colonna (2012) como exemplos das teorias clássicas, não são adequadas pois desestimulam o surgimento de tais tecnologias e o próprio mercado, além de, em alguns casos, ser juridicamente impensáveis7. Resta, portanto, considerar a imputação de responsabilidade aos fabricantes desses veículos.
Ocorre que fazê-lo desestimularia de forma substancial um mercado que pode trazer benefícios sociais, diminuindo o número de acidentes. Assim, seria necessário garantir a tais agentes uma espécie de proteção diferenciada, que mitigue o risco de atuação nesse setor8. Compara-se este contexto, assim, ao desfecho obtido pelo Price-Anderson Act.
Trazendo à discussão a legislação brasileira e deixando de lado a responsabilidade penal, quais seriam as dificuldades, riscos e soluções jurídicas para os carros autônomos à luz do Código Civil, Lei nº 10.406/2002 (CC), Código de Trânsito Brasileiro, Lei nº 9.503/1997 (CTB) e, a depender do caso, Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078/1990 (CDC)?
Para melhor ilustrar as diferentes reflexões jurídicas, vamos utilizar um exemplo de acidente envolvendo um pedestre e um carro autônomo em perfeito funcionamento, cujo controle ou interferência do motorista/proprietário é impossível. Assim, pergunta-se: quem será o responsável cível pelos danos?
No âmbito cível, poderão emergir inúmeras reflexões. Como a tecnologia do carro autônomo é capaz de conduzi-lo inteiramente, a responsabilidade civil pelos danos será, em regra, da empresa fabricante. Afirma-se isto porque tal tecnologia foi criada e produzida por ela, possuindo um risco intrínseco ao seu uso, sendo a causadora do acidente. Assim, entendemos pela aplicação da responsabilidade civil objetiva, dispensando-se a análise da sua culpa por decorrência da teoria do risco (artigos 186 e 927, § 1º, do CC).
Contudo, indagações poderão ser levantadas, havendo a necessidade de uma investigação mais detalhada do acidente: a estrada tinha buracos? O pedestre se jogou no veículo? No caso de smart mobility, a rede de comunicações dos carros autônomos deixou de funcionar (e.g. internet)? Houve um raio ou terremoto no local? Enfim, são fatos que podem fundamentar excludentes do nexo de causalidade, o que fundamentaria o afastamento da imputação de responsabilidade à fabricante.
Mas há mais: e se a relação entre motorista/proprietário e fabricante for compreendida como relação de consumo? No nosso exemplo, é possível o poder judiciário não compreender inteiramente a natureza do machine learning e equivocadamente aplicar o artigo 12 do CDC por entender que os danos foram decorrentes de um defeito do produto, imputando-se solidariedade ao “fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador”. Não é difícil imaginar uma enxurrada de processos sobre o tema, no litisconsórcio passivo, principalmente se levarmos em conta a predisposição do brasileiro ao litígio judicial e a realidade do contencioso de grande volume.
Então, são inúmeras reflexões jurídicas relacionadas aos carros autônomos e responsabilidade civil, impossibilitando o seu esgotamento em algumas poucas páginas.
No que tange ao CTB, entendemos que há a necessidade da evolução do seu texto haja vista sua incompatibilidade com os carros autônomos. Além de prever que o condutor-homem deve ter o domínio, a todo momento, do veículo (artigo 28 do CTB) – inviabilizando o nosso exemplo – as disposições e requisitos legais atinentes ao condutor são aplicáveis a seres humanos apenas, sendo incompatíveis com a tecnologia do carro autônomo. Uma alteração legislativa específica e atual é fundamental para nos adaptarmos à nova tecnologia disruptiva.
Dessa forma, nota-se que a maioria das situações é capaz de causar às fabricantes um excesso de situações jurídicas que poderiam onerar a sua implementação no Brasil, seja pelo alto volume de litígios ou pela própria incompatibilidade da legislação à tecnologia de carros autônomos. Justifica-se, pois, a criação de mecanismos de compensação e/ou mitigação de riscos jurídicos.
Qualquer que seja a conclusão deste dilema jurídico, não há dúvidas de que estamos lidando com uma situação bastante peculiar: enquanto no passado a questão da culpa (lato sensu) por um acidente restringia-se a motoristas e defeitos de produtos, surge um terceiro “elemento” cognitivo capaz de tomar decisões com consequências imprevisíveis: a inteligência artificial.
Portanto, não estamos muito distantes de uma discussão que envolve a personalidade jurídica de entidades movidas a sistemas cognitivos baseados em inteligência artificial9. Contudo, enquanto isso não for juridicamente possível, ainda nos restam as teorias tradicionais e sua devida adaptação às novas tecnologias.
O que não podemos, entretanto, é ignorar que essa é uma realidade mais próxima do que imaginamos.
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1 COLONNA, Kyle. Autonomous Cars and Tort Liability. Journal of Law, Technology and the Internet.Vol. 4, n. 1, Fall, 2012, p. 81-130.
2 https://www.theguardian.com/technology/2018/mar/22/video-released-of-uber-self-driving-crash-that-killed-woman-in-arizona?CMP=fb_gu
3 Disponível em: https://www.bmvi.de/SharedDocs/EN/publications/report-ethics-commission.pdf?__blob=publicationFile. Acesso em 25/01/2018.
4 Ver LIN, Patrick. Why Ethics Matters for Autonomous Cars. In: MAURER, Markus; GERDES, J. Christian; LENZ, Barbara; WINNER, Hermann. Autonomous Driving: Technical, Legal and Social Aspects. Berlin: Springler, 2016, p. 69-85. A abordagem ética é o ponto de partida das reflexões de Lin (2016), por exemplo, que considera dilemas éticos como essenciais para a compreensão da dificuldade de resolução de situações que ensejam tomada de decisões de veículos “sem motoristas”.
5 COLONNA, Kyle. Autonomous Cars and Tort Liability. Journal of Law, Technology and the Internet.Vol. 4, n. 1, Fall, 2012, p. 81-130.
6 Ibidem.
7 Ibidem.
8 Ibidem.
9 A discussão de responsabilidade de robôs já está em pauta no âmbito acadêmico, conforme se observa em SOLAIMAN, Sheikh. Legal Personality of Robots, Corporations, Idols and Chimpanzees: a Quest for Legitimacy. Artificial Intelligence and Law. Vol. 25, Issue 2, 2015, p. 155-179. Note-se, como exemplo prático, o caso da atribuição de cidadania ao robô “Sofia”, na Arábia Saudita. Disponível em:http://epocanegocios.globo.com/Tecnologia/noticia/2017/10/sophia-e-o-primeiro-robo-do-mundo-receber-um-titulo-de-cidadania.html. Acesso em 25/01/2018.
Por Rodrigo de Campos Vieira, Victor Cabral Fonseca e Vitor Yeung Casais
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