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Capital Social x Criptomoedas: A Harmonização de Entendimento da JUCESP representa alteração legal?

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No dia 20 de outubro de 2020, a Junta Comercial do Estado de São Paulo – JUCESP, através de seu escritório regional de Birigui, emitiu uma “Harmonização de Entendimento” que contém algumas instruções típicas de procedimentos em juntas e cartórios, porém a última delas chamou a atenção.

No último tópico, a JUCESP afirmou que as empresas podem integralizar o capital social com bitcoins/criptomoedas. 

Esta manifestação gerou muito debate, com manifestações mais entusiasmadas apontando uma evolução e outras mais céticas sustentando que não há nada de novo. Nesse sentido, resolvemos neste artigo explorar a seguinte pergunta: Esta manifestação representa um novo posicionamento legal? 

Para que essa pergunta seja respondida é necessário que alguns conceitos abordados na Harmonização de Entendimento sejam compreendidos, quais sejam:

O Capital Social

O capital social pode ser definido como o conjunto de recursos com que conta a sociedade para o desenvolvimento de suas atividades [1]. Estes recursos têm um valor econômico e este número é a representação, em termos financeiros, daquilo que os sócios/acionistas dedicam para que a sociedade desenvolva suas atividades, seja na sua constituição ou ao longo de sua atividade operacional [2].

Além de ser o meio para consecução de seus objetivos empresariais, o capital social tem a função de garantia em favor de credores, nas sociedades em que o sócio não responde com seu patrimônio pelas dívidas da pessoa jurídica.

Integralização em bens

O Código Civil (Art. 997, III) [3]  e a Lei das Sociedades Anônimas (Art. 7º) [4] trazem a possibilidade de se formar o capital social com contribuições em qualquer espécie de bens suscetíveis de avaliação em dinheiro (excluindo as sociedades cujo objeto social exige que o capital seja formado exclusivamente por moeda corrente nacional).  

Esses bens podem ser, materiais ou imateriais como: (i) móveis, imóveis, corpóreos, incorpóreos; (ii) direitos de crédito; (iii) participações societárias e usufruto dessas; e (iv) concessões de serviços públicos e licenças administrativas, dentre outros [5].

Ocorre que, quando da integralização do capital social em bens, são necessários certos cuidados a mais, para que se garanta uma avaliação idônea e condizente com a realidade, de modo que (i) se garanta a proteção dos interesses dos demais sócios/acionistas e (ii) dos credores da sociedade [6].

Proteção de sócios e credores

Como a contribuição em bens necessita de avaliação em dinheiro – pois somente o dinheiro tem poder liberatório das obrigações – e, por si só, a atividade avaliativa é carregada de certo subjetivismo, a permissão legal de se contribuir com bens para o capital social poderia vir a ser usada de modo a driblar o interesse dos demais sócios/acionistas e credores [7].

Isto é, um sócio mal intencionado poderia integralizar um bem (incluindo uma criptomoeda) com um valor em dinheiro declarado muito maior que seu valor real. 

Esta situação acarretaria, primeiro, na quebra da paridade entre os sócios, pois é pressuposto que todos eles tenham contribuído para a formação do patrimônio líquido da sociedade na mesma proporção e, somente por isso, poderão usufruir de seus frutos proporcionalmente. 

Segundo, seria uma fraude contra os credores da sociedade que acreditaram que o capital social fixado existia efetivamente, e, por isso, fizeram negócios com ela.

Portanto, a legislação visa resguardar a chamada realidade do capital social, isto é, a veracidade do seu valor.

Compatibilidade de bens a serem integralizados no capital social

A Lei das S.A. e o Código Civil são bem amplos ao tratar da natureza dos bens que podem ser integralizados a título de capital social, bastando ser suscetível de avaliação pecuniária.

Não obstante, existe uma discussão no âmbito societário, que admite que somente os bens utilizáveis para realizar o objeto social podem formar o capital social, sobretudo após a Lei nº 9.457/97 ter considerado como modalidade de poder abusivo do controlador a subscrição de ações com a realização em bens estranhos ao objeto social da companhia (art. 117, §1º, h, da LSA). 

Sendo assim, caso a sociedade opte pela modalidade de integralização de capital social por meio de bens, é necessário ponderar acerca dos possíveis desdobramentos relatados, acompanhando os posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais.

Natureza Jurídica das Criptomoedas

Avançando na discussão, cabe compreender se as criptomoedas são bens suscetíveis de avaliação pecuniária. 

A discussão a respeito da natureza das criptomoedas não é pacífica ainda [8], porém a IN nº 1.888/2019 da Receita Federal trouxe certa luz sobre o tema. 

A normativa define que criptoativos (gênero maior que engloba a espécie criptomoeda) são “a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal”.

Ao considerar que se trata de uma representação digital de valor que pode ser eletronicamente comprovado, ou seja, pode ser categorizado como bens incorpóreos, é possível afirmar que há espaço para entender que a legislação brasileira permite a integralização de capital social em criptomoedas, uma vez que são espécies de criptoativos e, por sua vez, os criptoativos  são representações digitais de valor, suscetíveis de avaliação pecuniária em moeda local ou estrangeira.

Avaliação de criptomoedas

Em caso de integralização com criptomoedas, um grande problema pode surgir no momento da avaliação pecuniária, já que não há um consenso [9] a respeito dos métodos que podem ser utilizados para avaliação de criptomoedas em geral. 

Além disso, a depender da fase de maturidade de uma criptomoeda, ela pode ser extremamente volátil, ou seja, seus valores podem oscilar muito em curtos espaços de tempo. 

Então, deve-se tomar todo o cuidado para que seja feita uma avaliação pecuniária idônea, devidamente registrada (nesse sentido, que garanta que os valores declarados correspondem à realidade) e, ainda, que o ativo escolhido para integralização tenha capacidade de garantir que a sociedade tenha de fato recursos para honrar com suas obrigações.

A escolha da criptomoeda em si é muito importante, pois o ecossistema de criptos apresenta uma grande quantidade de espécies, podendo-se afirmar que algumas delas deixarão de existir no futuro por conta da própria evolução do mercado. Desse modo, não seria indicado escolher integralizar o capital social com criptomoedas demasiadamente novas, que ainda não tenham certo respaldo do mercado.

Conclusão

Respondendo a pergunta anteriormente formulada, o que podemos dizer é que, a Harmonização de Entendimento emitida pela JUCESP por meio de seu  Escritório Regional de Birigui não alterou nenhum entendimento regulatório a respeito das criptomoedas. Portanto, não há que se falar em novo posicionamento legal adotado pela JUCESP. A manifestação é, contudo, bem recebida pois vai reduzindo margem de questionamento.

A legislação vigente brasileira sobre o assunto já permitia a contribuição para o capital social com criptomoedas, considerando que são bens incorpóreos suscetíveis de avaliação pecuniária. 

Contudo, caso você esteja pensando em fazer uma integralização desse tipo na sua empresa, lembre-se dos pontos levantados sobre a idoneidade da avaliação pecuniária do ativo, a divergência doutrinária a respeito da utilidade dos bens do capital social e o cuidado para se escolher um ativo maduro, que possa garantir melhor a preocupação com a realidade do capital social.


Rosine Kadamani – Founder e CEO da Blockchain Academy. Advogada de direito bancário e empresarial por 13 anos no Pinheiro Neto Advogados. Graduada em Direito pela PUC-SP e pós-graduada em LLM – Mercado Financeiro e de capitais pelo INSPER-SP.  Ministrou conteúdo para BACEN, CVM, entre outras autoridades, bancos e empresas.

Leilani Mendes – Mestre em Direito dos Negócios da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. Graduação em Direito pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus. Há alguns anos se dedica a tema de Direito e tecnologia, em especial equity crowdfunding e programação de documentos jurídicos. Foi Coordenadora da Looplex Academy e hoje é professora na FGVLAW.

Vinícius Chagas – Colaborador da Blockchain Academy, na área de Conteúdo e Pesquisa. Acadêmico de Direito, cursando atualmente o 4º ano no IBMEC-RJ e estudante de Desenvolvimento Web na Trybe.


Referências:

[1] EIZIRIK, Nelson. A lei das S/A comentada. Volume I – 2ª edição revista e ampliada – Artigos 1º a 79. São Paulo: Quartier Latin, 2015. 

[2] LAMY FILHO, Alfredo e BULHÕES PEDREIRA, José Pereira. Direito das companhias. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

[3] Art. 997. A sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público, que, além de cláusulas estipuladas pelas partes, mencionará:

(…)

III – capital da sociedade, expresso em moeda corrente, podendo compreender qualquer espécie de bens, suscetíveis de avaliação pecuniária;

[4] Art. 7º O capital social poderá ser formado com contribuições em dinheiro ou em qualquer espécie de bens suscetíveis de avaliação em dinheiro. 

[5] LAMY FILHO; PEDREIRA, 2009, p. 204.

[6] Modesto Carvalhosa destaca outros interesses a serem tutelados, dentre os quais: (i) futuros investidores; (ii) interesse público, representado pelo interesse do Estado na continuidade da empresa. (CARVALHOSA; KUYVEN, 2016, p. 279-280). 

[7] Nesse sentido, Alfredo Lamy Filho afirma: “A avaliação está longe de ser ciência exata, e a subscrição de bens prestou-se – e ainda continua a se prestar – a manobras fraudulentas contra contra credores e acionistas, pela atribuição de valores exagerados e mesmo fantasiosos aos bens contribuídos, com o consequente “auamento” do capital social.” (LAMY FILHO; PEDREIRA, 2009, p. 201).

[8] Há alguns outros exemplos de posicionamentos de agentes reguladores que tangenciam a natureza e os aspectos legais das criptomoedas, como: Comunicado BCB Nº 25.306/2014; Comunicado BCB Nº 31.379/2017; Nota da CVM sobre ICOs; F.A.Q da CVM sobre ICOs.

[9] Diversas entidades têm levantado esforços para definir um método de precificação de criptoativos. O diretor de pesquisa sobre alocação de ativos da T. Rowe Price Group, Stefan Hubrich, sugere que o preço de criptomoedas deve ser calculado a partir do seu valor de mercado frente ao volume em dólares das transações no blockchain, adotando para isso um período de quatro meses, ao invés dos doze meses normalmente utilizados para ações, devido à quantidade limitada de dados históricos. Nesse sentido ver: https://baptistaluz.com.br/institucional/viabilidade-da-integralizacao-de-capital-social-por-criptoativos-no-brasil/,https://valor.globo.com/financas/noticia/2017/12/04/o-que-esta-por-tras-da-precificacao-do-bitcoin-1.ghtml. Acesso em 26.10.2020

Fonte: Blockchain Academy

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