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Afinal, o que é um bitcoin para o Direito?

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Uma análise da natureza jurídica das criptomoedas na perspectiva do direito civil

Você pode até [ainda] não saber o que é um Bitcoin. Você pode, inclusive, não ter Bitcoinalgum [nós não temos, infelizmente]. Mas o fato é que o Bitcoin é uma realidade e, por conta disso, precisamos conversar um pouco sobre a repercussão jurídica dessa novidade tão instigante.

O Bitcoin surpreendeu o mercado durante sua valorização expressiva, ocorrida no final de 2017, atingindo quase $ 18.000,00 dólares americanos na bolsa de valores Bitstamp1. É bem verdade que parte dessa supervalorização foi provocada por uma bolha especulativa, com o Bitcoin flutuando ao redor de $ 9.080,00 dólares no momento2, mas as alarmantes manchetes dos jornais e revistas especializadas foram faísca suficiente para incendiar o debate e ampliar o interesse acerca deste fenômeno digital.

Mas afinal, o que é o Bitcoin?

O Bitcoin é, assim como a Ethereum (ETH), Litecoin (LTC), Monero (XMR) e ZCash (ZEC), umacriptomoeda3 que, dentre tantas outras (aproximadamente 1.558 no momento4), têm em comum a utilização da tecnologia Blockchain, que possibilita transações envolvendo ativos econômicos5digitais em um ambiente com criptografia ponta-a-ponta que produz um registro de todas as negociações efetuadas, gerando uma prova-de-trabalho sobre as operações, de modo que esse registro seja utilizado para garantir a validade de todas as operações posteriores6.

A segurança é considerada um de seus principais diferenciais porque as operações feitas em âmbito do Blockchain não necessitam de intermediários, sendo validadas, registradas e publicadas de maneira descentralizada, garantindo a confiabilidade e o caráter indevassável dos dados circulados.

Feitas as breves, porém necessárias explicações, refaçamos nosso questionamento inicial: para o direito, o que são as criptomoedas? Como o mundo jurídico enxerga, e.g., um milésimo7 deBitcoin? Qual deve ser, de acordo com uma análise também econômica do direito, o tratamento legal dos câmbios de moedas virtuais (virtual currency exchanges)?

A pergunta se justifica porque são [ainda] poucos os trabalhos acadêmicos que discutem ascriptomoedas no Brasil, principalmente no ambiente jurídico. É bem verdade que já tramita no congresso, desde 2015, o Projeto de Lei nº 2.3038 que visa a regulamentar o tratamento jurídico desse fenômeno tecnológico e econômico. Do mesmo modo, a Comissão de Valores Mobiliários se dispôs a regular o assunto em duas oportunidades: primo por meio de uma Nota técnica lançada em 2017 para orientar a ICO, i.e., a oferta inicial de moeda (Initial Coin Offering) e; secundo, já em 2018, através de um Ofício que indicou a vedação de que fundos de investimento privados9adquirissem criptomoedas10, o que se justificou pela conclusão da CVM de que as virtual currencynão podem ser qualificadas como ativos financeiros.

Aliás, esse último Ofício mencionado (da Superintendência de Relações com Investidores Institucionais da CVM) reforça a importância de iniciativas que se disponham a entender a natureza jurídica das criptomoedas, tendo em vista que “tanto no Brasil quanto em outras jurisdições ainda tem se discutido a natureza jurídica e econômica dessas modalidades de investimento, sem que se tenha, em especial no mercado e regulação domésticos”11 concluído coisa alguma.

Da leitura conjunta dessas duas iniciativas, vê-se uma tentativa de que o Bitcoin e as demaiscriptomoedas sejam encaradas como arranjos de pagamento, sendo equiparadas, por expressa dicção do Projeto, à programas de milhagens aéreas. Assim depreendemos porque o propósito desse Projeto de Lei é dispor “sobre a inclusão das moedas virtuais e programas de milhagem aéreas na definição de ‘arranjos de pagamento’ sob a supervisão do Banco Central”, conforme se vê nos arts. 1 e 2º do mesmo PL, que pretendem alterar o art. 9º, I, da Lei nº 12.865/13 e o art. 11, § 4º, da Lei nº 9.613. Busca-se, portanto, categorizar as operações que envolvam moedas virtuais criptografadas e programas de milhagens aéreas como arranjos de pagamento.

Ousamos, contudo, discordar desse entendimento.

É que, por mais que seja valorosa a postura de tentar trazer luzes para o tema e sedimentar suas bases legais, nos parece que tal conceituação não assimila a completude e complexidade desses novos paradigmas tecnológicos. Reconhecemos que a inspiração do art. 2º do PL 2.303 vem do relatório especial do Banco Central Europeu de 201212, mas, em nossa visão, essa classificação desconsidera alguns aspectos relevantes que, acaso considerados, não conduziriam à percepção a nosso ver impertinente das criptomoedas como uma espécie de crédito em uma loja virtual.

As criptomoedas se diferenciam de outras moedas virtuais do passado por conta da descentralização que é peculiar àquelas. Antes, cada moeda virtual era vinculada à bancos de dados. Tais bancos de dados eram mantidos por um intermediário que armazenava, atualizava e controlava as informações neles contidas, sendo responsáveis pela segurança destas13. Por essa razão, parecia assaz confortável classificar as antigas moedas virtuais como arranjos de pagamento – como, por exemplo, os valores depositados em Paypal 14. Contudo, o mesmo não se pode dizer em relação às criptomoedas genericamente compreendidas.

O que parece tornar a definição da natureza jurídica dos ativos em Blockchains sem autoridades discerníveis tão problemática tem a ver com as questões da não vinculação, da irreversibilidade e da confusão ente posse e propriedade da criptomoeda.

Quanto a não vinculação, se verifica que a natureza da criptografia torna impossível ligar uma pessoa à uma assinatura digital. Qualquer pessoa pode criar múltiplas assinaturas digitais em uma rede Blockchain pública sem precisar se identificar. Já em um Blockchain privado, os critérios para convite não dependem da qualificação da pessoa que ingressará na rede, mas das regras que forem arbitradas no interior do sistema.

A seu turno, a questão da reversibilidade é observada a partir da validação das operações via consenso público, que torna qualquer ativo contido em uma assinatura digital virtualmente inatingível por qualquer ato, seja entidade privada ou do poder público. Uma vez criada a prova-de-trabalho da transação, qualquer tentativa de revertê-la será imediatamente anulada pelo sistema. Este problema pode ser circunvencionado nas Blockchains privadas, mas dependerá das regras que o sistema arbitrar para validar ou reverter a transação.

Ao final, a questão da confusão entre posse e propriedade ocorre pela natureza criptográfica dosBlockchains. Visto que o compartilhamento da chave privada, que dá acesso ao bem digital contido na chave pública, permite que a pessoa tome total controle dos ativos vinculados à assinatura digital, compartilhar a chave privada fará que a pessoa que souber desta imediatamente terá pleno uso, gozo e disposição dos ativos virtuais de maneira irrestrita e indistinguível do proprietário original da assinatura digital. Da mesma forma, este problema pode ser mitigado em redes Blockchain privadas caso existam outros mecanismos de segurança no interior da programação, não validando transações onde haja suspeita de fraude.

Assim, a resposta à pergunta “o que é um Bitcoin para o Direito” demanda, para ser bem respondida, uma necessária distinção: cada criptomoeda está inserida em uma rede Blockchain e essas redes podem ser públicas ou privadas15.

As redes públicas permitem que qualquer um crie assinaturas digitais no Blockchain, o registro das transações é público e o protocolo de validação das transações é controlado por nós (nodes) públicos, mantidos por qualquer pessoa. As redes Blockchain privadas, por sua vez, somente permitem a criação da assinatura digital via convite, o registro das transações pode ser seletivamente secreto e as regras de validação das transações podem variar.

As Blockchains públicas, como as do Bitcoin, não possuem qualquer figura central que possa ser responsabilizada pela integridade da rede ou pelas transações que nesta ocorre. As Blockchainsprivadas também podem ser criadas com regras que não vinculem as operações à um grupo discernível de pessoas físicas ou jurídicas. Por conta disso, sempre que inidentificáveis instituidores no Blockchain, não nos parece impertinente enxergar as criptomoedas como arranjos de pagamento porque incompatíveis com o próprio conceito formulado pelo Banco Central16.

Com base nisso, pensamos que a natureza jurídica de um Bitcoin poderá ou não corresponder à de um arranjo de pagamento. Configurará um arranjo de pagamento sempre que for concebido comocriptomoeda sem autoridade reguladora discernível; a seu turno, caso não seja possível identificar essa autoridade gestora, terá, à luz do Direito Civil, a natureza jurídica de bem móvel que, a despeito de sui generis, se encontra inserto no art. 83, III, do CC/2002, que dispõe que“consideram-se móveis para os efeitos legais: III – os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações”.

Em outras palavras, o que queremos dizer é que Blockchains privadas até podem consistir em arranjos de pagamento; Blockchains públicas, ao revés, jamais. Serão, para nós, bens móveis especiais. Percebe-se, dessa forma, que as criptomoedas, assim como todos os ativos digitais em um Blockchain, têm sua natureza jurídica definida pelas características da rede Blockchain que se insere.

É isso o que nos parece, confiantes de que boa estruturação do direito tende a reduzir assimetrias de informação e, com isso, propiciar que as partes negociem de per si. Incertezas geram ineficiência, tanto no campo da Economia quanto do Direito. A definição dos direitos de propriedade que circundam os direitos que decorrem da tecnologia do Blockchain obstaria ou, ao menos, criaria incentivos negativos para que não se prestassem para fins espúrios, seja em larga escala (citemos, v.g., a possibilidade de servirem para corrupção, lavagem de dinheiro, crimes virtuais, evasão fiscal, descaminho e contrabando, os quais, inclusive, têm ocorrências no Brasil17), seja na perspectiva micro (e.g., fraude à execução, abuso de forma, desvio de finalidade e, até mesmo, para fins de ocultação de patrimônio em partilha de bens18).

Definidas as bases do enquadramento legal das criptomoedas, seria a hora de pensarmos em questões de governança e compliance das transações que envolvam essas novidades tão instigantes [e intrigantes]. Mas isso ficará para um próximo artigo; até lá, aguardemos as cenas dos próximos capítulos que, ao que tudo indica, guardam [muitas] emoções19.

Eram essas as modestas contribuições que por ora nos cabiam.

 

—————————————–

1 Cf. https://www.reuters.com/article/us-global-markets-bitcoin/bitcoin-hits-new-record-high-as-warnings-grow-louder-idUSKBN1E919T.

2 Cf. http://markets.businessinsider.com/currencies/btc-usd.

3 A definição da natureza jurídica das criptomoedas se faz necessária ante suas características diferenciadas: a impossibilidade de replicação; descentralização da rede em que esta opera; a privacidade conferida pela criptografia; e a segurança dos registros contínuos e invioláveis demandam que as moedas criptografadas sejam considerados verdadeiros ativos digitais, detentores de valor próprio e sujeitos às regras de mercado, mas, devido à natureza virtual das entidades que operam com as criptomoedas, é fútil a tentativa de vincular uma pessoa, seja física ou jurídica, à propriedade deste ativo, porquanto não há mecanismos de comprovação absoluta deste vínculo.

4 Cf. https://coinmarketcap.com/all/views/all/.

5 Ativo econômico compreendido em nível técnico, como “o conjunto de bens e direitos de uma entidade” cf. GOULART, André Moura Cintra, O conceito de ativos na contabilidade: um fundamento a ser explorado, 2002, Rev. contab. finanç. vol.13 no.28 São Paulo Jan./Apr. 2002, disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-70772002000100004.

6 Cf. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71402015000100003

7 O Bitcoin pode, a depender do quanto é negociado e do volume dessas negociações, fragmentado em tantas unidades decimais quantas forem necessárias. Temos, agora, os Satoshis, em homenagem ao precursor da iniciativa, como sendo a menor unidade de valor de um Bitcoin. A esse respeito, v. <https://www.bitcoinmais.com/blog/o-que-sao-satoshis/>.

8 Cf. PL disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=578CFCD0D0856BD30EA0A44070211781.proposicoesWebExterno2?codteor=1358969&filename=PL+2303/2015>.

9 Que são regulados pela Instrução CVM nº 555/14.

10 A respeito do assunto convidamos, para maiores detalhes, à leitura das impecáveis análises (uma, inclusive, de um eternamente querido Professor da graduação) que, dialogando entre si, já se encontram publicadas no JOTA. V., respectivamente, < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/cvm-e-criptomoedas-prudencia-ante-euforia-31012018> e <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/cvm-proibe-fundos-de-investirem-diretamente-em-criptomoedas-18012018>.

11 Cf. Ofício Circular nº 1/2018/CVM/SIN disponível em: <http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/legislacao/oficios-circulares/sin/anexos/oc-sin-0118.pdf>. Acesso em: 18.01.14.

12 Cf. Virtual currency Schemes. European Central Bank.October, 2012. Disponível: <https://www.ecb.europa.eu/pub/pdf/other/virtualcurrencyschemes201210en.pdf>.

13 É o que acontece, por exemplo, no âmbito do cadastro positivo. Nova lei do cadastro positivo beneficia o consumidor? Cf. <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/nova-lei-do-cadastro-positivo-beneficia-consumidor-15012018>.

14 Cujo contrato de usuário expressamente prevê essa natureza jurídica de arranjo de pagamento: “1.1 O PayPal é uma Instituição de Pagamento, da modalidade Emissor de Moeda Eletrônica, e um Instituidor de Arranjo de Pagamento, nos termos da Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013, atualmente em processo de autorização perante o Banco Central do Brasil”. Cf. o user agreement disponível em: <https://www.paypal.com/br/webapps/mpp/ua/useragreement-full>.

15 Cf. https://www.ibm.com/blogs/blockchain/2017/05/the-difference-between-public-and-private-blockchain/.

16 “A regulamentação vigente prevê a existência de arranjos de pagamentos que, por possuírem volumes reduzidos de transações e usuários ou por apresentarem um propósito limitado de uso (vide Circular nº 3.682/2013, art. 2º), não oferecem risco ao normal funcionamento das transações de varejo no país. Esses arranjos de pagamento, classificados como “não integrantes do SPB”, prescindem de autorização do Banco Central do Brasil para funcionamento, o que confere maior espaço para inovação”. Cf. documento disponível em: <https://www.bcb.gov.br/htms/novaPaginaSPB/ArranjosNaoIntegrantes.asp>.

17 “Esquema de fraude no sistema penitenciário do RJ usou bitcoin para lavar dinheiro, diz Receita”. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/pf-detalha-esquema-do-pao-nosso-que-prendeu-delegado-e-ex-secretario-de-sergio-cabral.ghtml>.

18 Como já foi muito bem tratado no JOTA em “Moedas virtuais e seu impacto no Direito de Família e Sucessões” cf. < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/moedas-virtuais-e-seu-impacto-no-direito-de-familia-e-sucessoes-04032018>.

19 “Bitcoin afunda e perde os R$ 30 mil após Google banir propagandas de criptomoedas”. Cf. http://www.infomoney.com.br/mercados/bitcoin/noticia/7330638/bitcoin-afunda-perde-mil-apos-google-banir-propagandas-criptomoedas.

 

Por Paulo Fernando de Mello Franco e Oswaldo Perdigão de Lima Neto

Fonte: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/afinal-o-que-e-um-bitcoin-para-o-direito-26032018

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