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Por Tiago C. Vaitekunas Zapater
Desde que a dimensão dos impactos da covid-19 começou a ficar mais clara, temos sido consultados por clientes de diversos setores (indústria de base, tecnologia, bens de consumo, construção etc.) sobre a possibilidade de exigir ou dispensar o cumprimento de obrigações contratadas antes da crise. Também há dúvidas quanto aos contratos que estão sendo negociados agora, sem que as partes saibam se, no futuro, terão condições de cumprir o acordado. Entretanto, multiplicam-se questões no âmbito das relações de trabalho, de consumo, com o governo etc.
Mas o que pode o Direito diante de uma pandemia? O Direito não é capaz de produzir leitos ou vacinas. O Direito pode julgar as decisões políticas, que vinculam a coletividade,
mas não pode substituir a política na produção dessas decisões. Pode arbitrar a licitude da distribuição dos recursos, mas não pode suprir a falta de recursos. O Direito pode até mesmo suspender direitos e suprimir liberdades legalmente, mas não pode fazer com que todos fiquem em casa. O Direito, enfim, demarca o ilícito, mas não tem o poder de fazer o ilícito desaparecer. Nessas condições, que prestação o Direito pode oferecer em tempos de crise?
Niklas Luhmann recorria à seguinte parábola. Um beduíno deixa um testamento para seus três filhos, estabelecendo, conforme a tradição do clã, a seguinte sucessão: o filho mais velho receberia metade dos bens; o segundo filho receberia um quarto e o mais novo um sexto. Contudo, em razão de uma grande peste, quando o beduíno morre, seu patrimônio fica reduzido a 11 camelos. O filho mais velho reivindica 6 camelos. Os outros filhos protestam e o caso é levado a um juiz, que faz a seguinte proposta: “eu lhes ofereço o meu próprio camelo. Vocês o usam para fazer a partilha e me restituem tão logo possam“. Com o décimo segundo camelo, a divisão fica simples: o filho mais velho leva 6 camelos (metade), o segundo filho 3 camelos (1/4) e o caçula 2 (1/6). Feita a divisão, sobra 1 camelo, restituído ao juiz.
O décimo segundo camelo do juiz, para Luhmann, ilustra a importância operacional do valor simbólico que o Direito pode oferecer, tornando possível a decisão dos conflitos. O Direito atua no plano das expectativas sem precisar rever as decisões políticas (no caso, o testamento), nem providenciar os recursos econômicos (o camelo foi restituído ao juiz). O Direito oferece referência para as expectativas normativas, daquilo que se pode esperar como certo mesmo quando os fatos ocorrem em sentido contrário.
Isso não é pouca coisa, como aponta Celso Campilongo, pois só o Direito pode fazer isso. Economia e política atuam nas comunicações sobre alocação de recursos e decisões que vinculam a coletividade, mas só o Direito pode atuar sobre as expectativas normativas, o que é essencial no tratamento dos conflitos.
Em situações de crise, o Direito oferece a possibilidade de se manter expectativas diante da imprevisibilidade dos fatos e, igualmente importante, da imprevisibilidade do próprio Direito. Sendo fruto de decisões (e não natural), o Direito está sujeito a mudanças, mas desenvolve programas para tratar das expectativas normativas sobre as mudanças no próprio Direito. Mecanismos de exceção, como os estados de exceção, ou a invocação de força maior, servem justamente a essa finalidade: possibilitam inversões e mudanças nos programas do Direito sem precisar suspender o Direito como um todo.
Há implicações práticas: diante da covid-19, a questão não é tanto saber quais obrigações deixam de ser exigíveis, mas sim quais são as novas obrigações que as partes passam a ter para, diante da crise, manter o máximo possível das expectativas normativas iniciais ou, ao menos, expectativas sobre as expectativas.
Não há, assim, respostas tamanho único sobre se a covid-19 é ou não um caso de exclusão das obrigações devidas: cada caso exige análise da obrigação debatida, da cláusula de força maior (se existente) e sobre como distribuir os ônus que recaem sobre as partes em uma situação de imprevisão que afeta a todos. É preciso entender, por exemplo, em que medida a pandemia efetivamente impede o cumprimento de uma obrigação, ou se há outros meios alternativos de cumprimento, mesmo que mais gravosos. A pandemia atinge não só aqueles que devem uma obrigação, mas também credores de obrigações, que poderão estar sujeitos a prejuízos muito maiores do que cada dívida no caso de uma liberação total.
Nos contratos que estão sendo negociados hoje, a previsão de força maior não pode se manifestar como uma reserva mental (assumir obrigações que não pretende cumprir), nem ser inócua de partida: a pandemia já existe, mas seus efeitos futuros sobre a capacidade de cumprimento das obrigações ainda não são conhecidos, o que pode ser importante de se esclarecer.
Os Tribunais brasileiros, mostra a experiência, podem agir com uma mistura de anseio por justiça nos casos individuais e receio de causar choques estruturais nos grandes casos. Tudo isso recomenda cautela e uma preferência pelas saídas negociadas. No Brasil, como observou Marcelo Neves, o décimo segundo camelo pode estar em falta, ou pode ser preciso improvisar. Mas também essa é uma prestação importante que o Direito, mesmo imperfeito, pode oferecer: não esperar do Direito aquilo que ele não pode dar já é percorrer uma boa parte do caminho na solução dos conflitos.
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