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O limite para os robôs são os limites éticos e as prerrogativas de cada profissão

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Quase 50 anos depois da estreia do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, em 1968, é difícil não imaginar algo que a tecnologia não seja capaz de fazer. Mas de dois anos para cá, com a popularização do processamento de grandes volumes de dados, boa parte do que se imaginou durante os anos 1960 é mais do que realidade: quem não se adaptar às novas formas de trabalho é forte candidato a ficar para trás num mercado cada vez mais ditado pelas evoluções tecnológicas.

Hoje, segundo o advogado Alexandre Zavaglia Coelho, diretor-executivo do Instituto de Direito Público de São Paulo (IDP-SP), a tecnologia permite pesquisar os dados produzidos por tribunais diariamente. A partir disso, também é possível programar softwares para tirar conclusões a partir do comportamento decisório de tribunais e chegar a dados impensáveis há cinco anos. Escritórios já são capazes de mapear a taxa de sucesso de uma tese em todos os casos sobre erro médico julgados em uma determinada região, por exemplo.

Mas isso não quer dizer que programas de computador vão substituir advogados e passar a fazer o trabalho deles. Segundo Zavaglia, os softwares, ou robôs, como é o termo da moda, apenas respondem perguntas e levantam informações. As questões continuarão sendo elaboradas por humanos, e, cada vez mais, por humanos especializados em fazer isso, prevê, em entrevista à ConJur.

O futuro, diz ele, será de profissionais que usam a tecnologia para dar apoio à prestação de serviços jurídicos. E não de tecnologia que dispensa a interação com humanos. “Somos nós que dizemos o que o robô pode fazer e até onde a tecnologia pode ir”, afirma. “O limite da tecnologia deve ser o limite das prerrogativas dos profissionais.”

Foi por isso que ele criou, no IDP-SP, o curso Ciência de Dados aplicada ao Direito. O objetivo, diz ele, é mostrar à comunidade jurídica como usar em seu favor esses grandes volumes de dados hoje produzidos por empresas e pelo poder público. E a julgar pela procura pelo curso, é um talento em falta no mercado: as 60 vagas para o primeiro módulo, o mais básico, se esgotaram em dez dias.

Leia a entrevista:

ConJur — A pergunta fundamental aqui, até aproveitando a enorme procura que o curso teve, é: o que ciência de dados tem a ver com Direito?
Alexandre Zavaglia —
Em áreas ligadas à administração de empresas e a economia, a tomada de decisões é sempre a partir de estudos empíricos, de dados concretos sobre diversas situações. Em Direito, até por causa da quantidade de informações diferentes de áreas diferentes, antes de ter essa tecnologia disponível, não se conseguia organizar esse tipo de informação. Vemos advogados, juízes e até tribunais falando que determinada jurisprudência é dominante, mas quem tem de fato esse dado? Os advogados criavam suas teses a partir de estudos que não conseguiam enxergar o todo, até porque era impossível ver todos os processos sobre aquele assunto. Então é isso que tem a ver: com essa tecnologia é possível filtrar a informação para a melhor tomada de decisões.

ConJur — Bases mais seguras para justificar uma decisão?
Alexandre Zavaglia —
O foco principal é esse. Claro que o mercado hoje já está cheio de startups e a quantidade de empresas da área tem crescido de forma impressionante, mas nosso trabalho é o uso da ciência de dados para dar suporte à tomada de decisões.

ConJur — Não entendi o uso do “mas”.
Alexandre Zavaglia —
Tem muita gente que usa essa coisa hollywoodiana da inteligência artificial, o “robô advogado” que vai dominar todas as questões. Mas não acredito nisso. Quem trabalha no dia a dia com temas ligados a tecnologia sabe que tem muita atividade humana envolvida. Uma das principais é a chamada curadoria de dados: uma pessoa precisa saber pesquisar, entender o que ela está buscando, para fazer as perguntas certas e filtrar os dados a que tem acesso. O grande desafio é organizar essa base de dados e as perguntas corretas, e num terceiro momento analisar as respostas. Tudo isso é feito por um ser humano.

ConJur — Ou seja, o robô só responde
Alexandre Zavaglia —
O programa de computador, que hoje chamam de robô, organiza os dados. Ele consegue fazer uma leitura rápida de quantidades enormes de dados para trazer informações. E ele também pode ser aprimorado para melhorar a organização desses dados. Mas o humano nunca vai deixar de ser necessário para a organização dessa base de dados. Especialmente no Direito, que são casos complexos e cheios de peculiaridades e é difícil conseguir resultados corretos sem pessoas para fazer as perguntas corretas e analisar corretamente os resultados.

ConJur — Como funciona isso com os escritórios?
Alexandre Zavaglia —
Temos conversado com vários escritórios para trocar experiências e vemos que cada um tem a sua metodologia e sua forma de aplicá-la, a depender do cliente. Cada um tem um passo a passo diferente para chegar às conclusões. Portanto, muito mais do que a tecnologia ou a ciência de dados, é uma mudança de pensamento. É começar a pensar a partir de dados empíricos para melhorar uma decisão, e para isso não precisa de grandes tecnologias.

ConJur — Um grande problema que encontramos fazendo pesquisa com os dados do Judiciário é a falta de organização deles de forma estruturada. Esse é o maior problema?
Alexandre Zavaglia —
A automação de processos pode levar à criação de dados não estruturados. Hoje 80% dos dados disponíveis são não estruturados, estão em fotos, vídeos, áudios, textos etc., e o softwareconsegue identificar e estruturar. Então primeiro a gente tem que estruturar esses dados de maneira que possa fazer a pesquisa depois. A Receita Federal, por exemplo, já trabalha com isso há alguns anos. A “malha fina” nada mais é do que pessoas cujos dados fogem do padrão com que a Receita trabalha, e hoje ela já usa dados não estruturados, como fotos em redes sociais. A mudança é a capacidade de fazer perguntas a dados que não estão estruturados. O software consegue ler aquela petição inicial e fazer um cadastro automático.

ConJur — Diversos tribunais passam por problemas de cadastro. O Supremo, por exemplo, tem dezenas de formas de cadastro de processos de Previdenciário, o que inviabiliza a pesquisa.
Alexandre Zavaglia —
Todos passam por isso. Conversando com os escritórios, percebo que para eles também o primeiro grande problema é o cadastro, porque precisam de informações corretas para fazer uma gestão de dados melhor. É a diferença de um cadastro automático para um cadastro feito por pessoas. Uma pessoa pode colocar o mesmo dado num documento de formas diferentes, e outra vai ler e interpretar. Por exemplo, cadastrar um processo como “ação indenizatória”, mas não dizer que é “erro médico”. Quando o software permite a busca dentro do documento, as informações obtidas são melhores.

ConJur — É fácil ver as vantagens da análise de dados para advogados de empresas, ou departamentos jurídicos de empresas, que pesam custos. Mas como isso pode ser usado por advogados “normais”, como os criminalistas, ou os dedicados a causas de responsabilidade civil?
Alexandre Zavaglia —
Já há bases de dados hoje bastante acessíveis, empresas que vendem conjuntos de dados a preços bem baixos. É possível saber a quantos processos determinada empresa responde, ou qual o posicionamento de determinada vara sobre determinado assunto, por exemplo. E a tendência é que esse serviço melhore cada vez mais e fique cada vez mais barato. Teve um caso em que o cliente pedia indenização de R$ 20 mil. Os dados disponíveis mostraram que ele tinha grandes chances de ganhar, mas depois de um ano. Mas se ele negociasse para receber, no ato, R$ 1,3 mil e aplicasse o dinheiro, somado à economia que teria com defesa e manutenção do processo, em um ano ele teria mais de R$ 20 mil. Portanto, não é uma mudança no Direito, é uma revolução na prestação de serviços jurídicos.

ConJur — Por isso há advogados receosos de que os robôs venham a substituí-los.
Alexandre Zavaglia —
Fizemos esse curso aqui, o primeiro do tipo no Brasil, e a procura foi enorme. As 60 vagas foram preenchidas em dez dias. Isso mostra a tendência do mercado, que as pessoas estão preocupadas com essa nova realidade. Em vez de ficarmos preocupados em sermos substituídos, por que não nos preparar para ela? A tecnologia é essa e temos que saber como nos posicionar, como nos preparar. O que as pessoas precisam entender é que elas precisam desenvolver novas habilidades para lidar com essas mudanças, mas que elas continuam sendo indispensáveis. Hoje temos tecnologias avançadíssimas na área da saúde, para diagnóstico de câncer, por exemplo, mas nunca vamos dispensar o médico para dizer que base de dados deve ser considerada para o diagnóstico. É fundamental a pessoa da área, porque o programador sozinho não entende o problema de cada área.

ConJur — Ou seja, o advogado não vai ser substituído por uma máquina que faz buscas complexas em frações de segundos.
Alexandre Zavaglia —
Essa nova realidade abriu um campo de trabalho muito grande para advogados. Por exemplo, a especialização na utilização dessas tecnologias na prestação de serviços jurídicos. As pessoas ainda estão descobrindo o que está disponível, como funciona, se é viável, o que dá para fazer e o que não dá. Diferentemente do que aconteceu anos atrás, quando a tecnologia só poderia ser aplicada ao contencioso de massa. Hoje já vemos a aplicação a situações mais complexas. Já vemos até a sociedade civil engajada, ONGs olhando para quanto parlamentares gastam com combustível, observando padrões de comportamento, compra de passagens de avião. O IDP, recentemente, em parceria com a Fiesp e com a Associação de Delegados, fez um hackathon [maratona de programação] voltados a soluções anticorrupção e de combate à pedofilia.

ConJur — Há implicações éticas também, não? Hoje o Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, estuda a implantação de um sistema automatizado de leitura de petições e organização de informações e pedidos. O advogado que souber escrever petições amigáveis a esses sistemas, ou que desenvolva tecnologia capaz de dialogar com o sistema do tribunal, tem uma vantagem que não é exatamente competitiva.
Alexandre Zavaglia —
Minha grande preocupação é que a tecnologia não ultrapasse o que é a prerrogativa dos profissionais. O robô não deve fazer o trabalho do advogado. No caso do médico, o software pode dar informações e até sugerir o diagnóstico, mas a decisão quem toma é o ser humano. Não acredito que o robô possa fazer o trabalho do advogado. O limite dessa tecnologia é dar melhores informações e sugerir situações, mas não peticionar no lugar do profissional, por exemplo.

ConJur — Mas é um limite ético, não técnico.
Alexandre Zavaglia —
É um limite ético, mas primeiro temos o limite ético de cada profissão, e também a prerrogativa profissional. Existe um limite daquilo que só é permitido para quem exerce aquela profissão. Mas de fato existe uma preocupação com a preservação do trabalho de cada profissão. Antes a gente fazia pesquisa em enciclopédia, hoje faz busca no Google. E aquele algoritmo do Google é que nos ajuda a ter uma resposta melhor e nos ajuda a achar o que procuramos sem precisar fazer três ou quatro consultas.

ConJur — É o dilema do SEO [melhorias para mecanismos de buscas]. Um site pode ser construído para ser bem colocado nas páginas de busca, e não para divulgar conteúdo útil ou interessante. Não é a mesma coisa com esse uso intensivo de dados?
Alexandre Zavaglia —
Mas a tomada de decisão, ou seja, quem vai fazer o tratamento, é do médico, do advogado. O resultado de busca é só informação. Hoje, dentro dos nossos parâmetros profissionais, não seria desejável que um software faça a petição e dê entrada no processo. O que temos que construir é um melhor caminho para tomar decisões, e não para substituir pessoas. Mas isso depende de nós.

ConJur — Como assim?
Alexandre Zavaglia —
Se conseguirmos antever os problemas, conseguiremos construir uma regulamentação adequada, que garanta a inovação e preserve essas questões. Regulação costuma ter a característica de tornar tudo mais burocrático e mais caro e de atrapalhar a inovação. Houve um caso nos Estados Unidos do programa de cálculo de dosimetria da pena que foi usado para definir se um réu deveria ou não responder ao processo preso [Caso Eric L. Loomis – clique aqui para ler o acórdão, em inglês]. A Suprema Corte de Wisconsin decidiu que o software pode ser usado, mas dentro de certos limites. Ou seja, nós é que vamos dizer até onde o robô pode ir e até onde a tecnologia pode chegar.

ConJur — Há exemplos famosos de escritórios que medem a produtividade de seus advogados por minuto. Obviamente não são advogados que demoram minutos para redigir uma petição, eles têm ajuda de programas de computador.
Alexandre Zavaglia —
Mas isso é uma questão de gestão, é legítimo. Não está ligado à prerrogativa dos profissionais e nem ao Direito. São escritórios voltados ao contencioso de massa, e não é porque eles fazem que todos os ramos do Direito vão fazer. Existe o sofisma de que a tecnologia vai acabar com o Direito, mas nem sabemos quanto o contencioso de massa representa dentro do universo total de processos. Temos que sair da manchete sensacionalista e entender melhor quais são as tecnologias, o que é certo, quais são os limites éticos, e aprofundar esse debate. Até para não tolher a inovação e as boas ideias. Nem sempre tiramos conclusões a partir de informações corretas.

Fonte https://www.conjur.com.br/2017-nov-05/entrevista-alexandre-zavaglia-coelho-advogado-diretor-idp-sp

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