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A necessidade de adoção do trabalho remoto pelo Judiciário brasileiro, em vigor desde meados de março para ajudar a conter a disseminação da Covid-19, levou Tribunais de Justiça, Ministérios Públicos e Procuradorias em todo o Brasil a se adaptarem rapidamente ao trabalho em home office sem prejuízos às suas atribuições, já que são imprescindíveis para garantir a segurança da população e a efetividade das políticas públicas de controle à pandemia no país. Para se ter uma ideia, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), que é o maior do mundo em volume de processos, conseguiu adaptar 100% de sua estrutura para o trabalho remoto em apenas dois dias. Isso foi possível porque a transformação digital do judiciário brasileiro já alcançou um certo nível de maturidade, e a pandemia vem exigindo movimentos de maior adoção de tecnologia para tentar suprir algumas lacunas, corroborando a tese de que há espaço para evoluir.
A tramitação de processos por meios digitais, regulamentada em 2006, já era realidade na maioria dos Tribunais, mesmo antes do coronavírus. Na Justiça Estadual, por exemplo, o índice de processos sem papel chega a 82,6%, de acordo com o relatório Justiça em Números 2019, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O próprio presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, reconheceu, quando do anúncio feito pelo CNJ, que foi o avanço da tecnologia que permitiu à entidade publicar resolução, no mês de março, autorizando o teletrabalho em regime de plantão extraordinário por todo Poder Judiciário – e cuja desmobilização e retomada dos serviços presenciais pode se dar desde 15 de junho, de forma gradual e observadas as medidas mínimas necessárias para a prevenção de contágio pela Covid-19.
Dois meses depois de magistrados, promotores, procuradores e advogados terem passado a trabalhar em home office, fica evidente que a informatização da Justiça é um caminho sem volta e precisa avançar. A combinação de pessoas e tecnologia é a saída para escoar os gigantescos volumes de ações existentes no país. Simplesmente não é possível responder ao tamanho do desafio sem pensar numa informatização ainda mais ampla. Richard Susskind, talvez o maior pensador moderno da intersecção entre o direito e a tecnologia, certa vez afirmou que, “pessoas equipadas com tecnologia sempre irão superar pessoas que não dispõem de tecnologia ao seu lado para ajudá-las”, no que tange a produtividade.
Quando falamos da transformação digital na Justiça, precisamos compreender que há duas perspectivas a serem analisadas: a transformação digital atrelada ao trâmite do processo judicial em si (que é talvez a mais conhecida), e também o aspecto da transformação digital no “negócio” das organizações envolvidas. São cenários distintos.
O grande volume de processos tramitando no país, por si só, já representa um grande desafio. Atualmente tramitam cerca de 80 milhões de ações nas Cortes brasileiras. Lidar com isso tudo não é tarefa simples, pois ainda existe um legado de processos que tramitam em meio físico e cuja transformação para o formato digital nem sempre é possível. As Cortes também precisam lidar com a limitação de pessoal e gerenciar restrições orçamentárias. Nesse contexto, é a tecnologia que pode fazer a produtividade destas instituições subir, compensando assim a insuficiência no aumento de quadro e contratações de pessoal que seriam necessárias para fazer frente ao imenso volume de ações.
A transformação digital do processo judicial significa abandonar os autos físicos, ou seja, aqueles em papel, substituindo-os por equivalentes eletrônicos, em meio digital. Esta transição já estava em marcha no setor jurídico antes da pandemia, ancorada na previsão legal instituída pela Lei 11.419/06, que estabeleceu a validade do processo digital no país. A partir deste marco legal, instituído há 14 anos, muitos Tribunais iniciaram projetos para adoção e uso crescente do processo digital.
Há Tribunais mais adiantados, nos quais 100% dos casos novos já são recepcionados em meio digital, e outros que ainda estão trilhando este caminho. Atualmente, de modo geral, cerca de 85% dos processos do país já tramitam no formato digital. É um avanço significativo e que precisa ser reconhecido. Graças ao uso do processo digital, as Cortes puderam manter o seu negócio funcionando durante a pandemia, que ainda está em curso. A maioria dos Tribunais teve condições de dar prosseguimento em atos de distribuição, despachos, sentenças, decisões, acórdãos e etc, ainda que as Cortes estivessem fechadas fisicamente. Só para ilustrar, o TJSP, durante o período de quarentena, já realizou mais de 29 milhões de atos, incluindo 446 mil sentenças e acórdãos, 1,4 milhão de decisões e 848 mil despachos.
A operação de uma Corte de Justiça, no entanto, não se limita aos atos inerentes aos processos judiciais por ela geridos. Há inúmeros processos de trabalho que transcendem este aspecto, e que ainda precisam ser realizados de forma física e presencial. Portanto, a transformação digital do negócio ainda está em amadurecimento, e alguns pontos certamente serão impulsionados pela pandemia.
A mera substituição dos autos físicos em prol dos equivalentes digitais não resolve tudo. Boa parte do funcionamento das Cortes de Justiça ainda depende de instalações físicas e de procedimentos realizados em locais e salas determinados. Um exemplo são as audiências e oitivas de testemunhas, procedimentos realizados quase que totalmente por meio de salas físicas com agenda marcada e local definido. São procedimentos em que a transformação digital pouco foi aplicada até a pandemia. Outro exemplo são as negociações para acordos e conciliações, realizadas majoritariamente em ambientes também físicos, com local e data marcados. Isso implica em deslocamentos e custos para os envolvidos, impactando também na celeridade processual. Portanto, há espaço para avançar na transformação digital nestes e em outros aspectos.
Com a pandemia, observa-se movimentos de maior adoção de tecnologia para tentar suprir estas lacunas. O próprio Supremo Tribunal Federal adotou em caráter emergencial um sistema de videoconferência e plenário virtual para a discussão de suas matérias. Isso vem ocorrendo, ainda que em pequena escala, também nas demais Cortes. É um sinal de que a pandemia tem atuado como catalisador para o andamento da transformação digital nestes procedimentos, corroborando a tese de que há espaço para evoluir.
Também é fundamental o investimento em novas formas de resolução de conflitos, de modo a prevenir a judicialização, e nisso a tecnologia também pode contribuir. Atualmente, por exemplo, há soluções que facilitam a negociação de acordos em plataformas digitais, prevenindo litígios. Isso pode contribuir na redução do congestionamento das nossas Cortes. Soluções de analytics e jurimetria também terão um papel cada vez mais importante para identificar tendências e guiar as estratégias e ações com maior assertividade, permitindo um embasamento em dados e fatos e não em intuição.
Tudo isso precisa ser feito, contudo, lembrando sempre que no centro está o ser humano. São pessoas que recorrem à Justiça. E são pessoas que a entregam. Não faz sentido algum pensar num futuro em que máquinas ou algoritmos substituam pessoas, e não é por aí que as coisas estão caminhando. O que importa é compreender que sem o auxílio da tecnologia pode-se fazer muito menos. Portanto, não é uma questão da tecnologia substituir pessoas, mas sim, de ajudá-las a se tornarem mais produtivas e eficientes. Também é preciso lembrar que há uma transformação cultural em andamento. O Direito vem se transformando à luz das novas tecnologias, mas este processo leva tempo e não acontece da noite para o dia. É uma jornada. O importante é não parar. As conquistas já obtidas são relevantes e precisam ser ampliadas, pois a sociedade anseia por uma Justiça mais célere.
MARCOS FLORÃO – Diretor de Inovação da Softplan, a maior LawTech da América Latina
fonte: JOTA
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