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Está, literalmente, em todo lugar. O tema da inovação tecnológica já é parte da agenda de profissionais do direito e pode ser observado na mídia, em escritórios de advocacia, universidades e até mesmo órgãos públicos. Fala-se de uma mudança nunca antes vivida pelo jurista, que afetará cada vez mais a profissão e tornará a prática do direito algo irreconhecível em alguns poucos anos.
O grande fator propulsor destas transformações, dizem, é a tecnologia. Realmente: hoje temos uma quantidade inquestionável de soluções e ferramentas utilizáveis no cotidiano dos profissionais, oferecidas pelas chamadas lawtechs; de outro lado, observa-se o desenvolvimento exponencial de novas tecnologias que afetam profundamente as relações sociais, bem como as noções de tempo e espaço. Já não parece haver qualquer dúvida que o direito está em um processo de ressignificação e que abraçar a evolução é uma necessidade pujante para aqueles que desejam se manter relevantes em um futuro não muito distante.
Mas até que ponto estamos compreendendo corretamente essas mudanças?
Ainda que não possamos negar que as transformações tecnológicas demandam uma adequação urgente das ciências e práticas jurídicas, também seria irresponsável – e até prepotente – imaginar que esta é a primeira vez que observamos este fenômeno. A presença de tecnologia no direito e direito da tecnologia data de muito antes dos anos 2000.
Para entender isso, é necessário contextualizar o que consideramos tecnologia hoje e o que era considerado tecnologia há alguns anos. Pinansky explica, em estudo publicado em 1986, que o advento de tecnologias como a máquina de escrever e o telefone, por exemplo, foi um importante fator que impulsionou o crescimento de escritórios de advocacia norte-americanos na segunda metade do século XIX. Como relatado pelo professor, a introdução destes equipamentos no cotidiano de advogados, considerados tecnologias de ponta à época, aumentou o custo operacional de law firms – o que tornou o modelo de associação mais interessante do ponto de vista de compartilhamento de despesas. Trata-se claramente de uma inovação em como o direito era exercido, causada por novas ferramentas.
“CUSTOS OPERACIONAIS CRESCENTES DECORRENTES DE NOVAS TECNOLOGIAS […] PROVIDENCIARAM FORTES INCENTIVOS PARA ADVOGADOS SE JUNTAREM EM ESCRITÓRIOS QUE PUDERAM TOMAR VANTAGEM DAS ECONOMIAS DE ESCALA.” (PINANSKY, 1986)
Nem mesmo é possível afirmar que esta é a primeira vez que a tecnologia afeta severamente a sociedade a ponto de demandar ajustes no direito. Um excelente exemplo é o trazido por Colonna em artigo que trata da responsabilidade civil (tort liability) de veículos autônomos. Para analisar a questão, tão em voga atualmente diante da existência de carros totalmente autônomos cada vez mais avançados, o autor busca fundamentos nos reflexos jurídicos de outros meios de transporte existentes: elevadores, aviões, trens e até alguns navios já eram capazes de operar autonomamente há décadas e cada um provocou mudanças significativas nos ordenamentos jurídicos vigentes. Por fim, Colonna ainda sugere que uma estrutura semelhante à que foi criada na época do surgimento de usinas nucleares nos EUA fosse adotada para resolver a questão da responsabilização de carros autônomos (v. Price-Anderson Act). Novamente, o futuro repete o passado e tanto o direito quanto a prática jurídica foram afetados por transformações tecnológicas.
Se não é inédita, por que a tecnologia está em tanta evidência agora? A resposta chega a ser bastante simplória: velocidade. O efeito rede, a globalização, conectividade e outras condições favoráveis ao desenvolvimento ágil de novas ideias faz com que a evolução tecnológica hoje seja exponencial, e não linear. Não irei me alongar muito neste item, mas sugiro a leitura de materiais relacionados à Lei de Moore, a qual prega que “o número de transistores em um circuito integrado dobra a cada dois anos“. Apesar do famigerado teorema possuir controvérsias relacionadas a atual desaceleração estratégica da curva, o potencial computacional é cada vez maior diante de melhorias significativas em conceitos de arquitetura e utilização de novos materiais em circuitos. Fato é que o gráfico que pontua marcos notórios do desenvolvimento tecnológico apresenta-se exponencialmente, concentrando nas últimas décadas os menores intervalos de tempo entre lançamentos de tecnologias de ponta (figura abaixo extraída de Hoffman e Fucht, adaptada de Fogel).
Se a tecnologia em si não é novidade para o direito e sim a velocidade de seu desenvolvimento, é relativamente confortável afirmar que estamos interpretando as mudanças atuais de forma errada. Há muito mais coisas entre o céu e a terra acontecendo do que uma pura evolução tecnológica, e ter uma visão ampla e sensata do momento em que vivemos é fundamental para compreendê-lo.
Não erramos ao perceber um momento crucial que representa uma mudança de paradigmas na profissão jurídica. Apenas não entendemos muito bem a sua origem ao tentar atribuir à tecnologia o título de principal trampolim destas transformações. Enquanto o mundo binário é mais facilmente culpável pela ressignificação do direito, a resposta à grande questão é mais terrena. Hoje, pessoas mudaram muito mais do que os sistemas, aparelhos e outras representações da tecnologia.
Neste sentido, a interação de seres humanos com a tecnologia sim representa uma causa plausível para essa nova era. Mas essa é apenas a ponta do iceberg. Olhando com profundidade, percebemos que a questão é muito mais cultural do que qualquer outra coisa. E é por isso que essas transformações são tão impactantes e difíceis de entender. Tecnologia é ferramenta e, como qualquer outra, é só aprender a usar; mas mudar cultura é mexer na essência individual de cada um, e essa passa longe de ser uma tarefa trivial.
Startups desbancam grandes empresas com relações informais. Choque cultural. Gerações que já nasceram imersas na tecnologia chegam ao mercado de trabalho já consolidado. Choque cultural. Clientes demandam mais experiências do que novos produtos. Choque cultural. O valor do dinheiro se distorce ao quebrar fronteiras e indivíduos terem mais acesso a serviços. Choque cultural. Cada um de nós vivencia inúmeros choques culturais diariamente, sem nem percebermos. Logicamente, o ambiente de trabalho não está isento disso – muito menos o direito e seus operadores.
“O papel do advogado é de produtor da disrupção”, diz Jack Wroldsen, “não engenheiros de custo de transação”. Em outras palavras, o autor descreve que o papel do advogado deve ser de parceiro estratégico, criando soluções criativas para seus clientes. Muito além de um simples criador de contratos, o profissional do futuro agrega valor ao seu trabalho, indo até a última página de seu intelecto para que o resultado final seja realmente uma obra de raciocínio jurídico. Michelle DeStefano também concentra boa parte de sua teoria sobre o futuro do direito em questões relacionadas a atitude, treinamento, postura e comportamento do profissional.
Não é preciso ir muito longe. Se antes o valor era medido em cifras, hoje o propósito guia as relações interpessoais. Mark Bonchek trata dos diferentes tipos de propósito em artigo publicado na Harvard Business Review, demonstrando que uma das maiores lutas de grandes empresas atualmente é encontrar um motivo de engajamento e colaboração entre os indivíduos que nelas trabalham. Sob outra ótica, um relatório sobre o futuro dos serviços jurídicos publicado pela The Law Society of New South Wales destaca em mais de uma oportunidade as peculiaridades da geração millennial, que demonstra outros valores. Estes serão os clientes – e profissionais – cada vez mais presentes no mercado.
Até mesmo Richard Susskind, que tanto citei em outras oportunidades, coloca a tecnologia como apenas um dos drivers de mudança, ao lado de demandas “mais por menos” e da liberalização dos serviços jurídicos. Para Susskind, clientes demandarão mais qualidade por menos custos – criando o que chama de more-for-less challenge – enquanto serão gradativamente introduzidos os chamados Alternative Legal Service Providers (fornecedores alternativos de serviços jurídicos, como consultorias), aumentando a competitividade e distorcendo o mercado. Antes de introduzir tecnologia, é primordial mudar processos, implementar novas habilidades e, acima de tudo, rever posturas e atitudes.
Onde quero chegar? Esta é uma era em que pessoas agem diferente. Compram diferente. Se comportam diferente. Valorizam diferente. Trabalham diferente. A tecnologia é parte, mas não a totalidade da mudança. Perto do que mudaram as pessoas, a tecnologia é quase a mesma. E entender pessoas é muito mais difícil do que entender ferramentas.
Se o papo é sobre relevância no futuro, precisamos urgentemente entender que as mudanças envolvem toolsets (ferramentas, como a tecnologia), skillsets (novas habilidades) e, muito mais, mindsets (comportamentos e cultura). Não adianta se preparar para usar tecnologia ou implementar uma metodologia diferente, por exemplo, se o exercício não tiver esforços para mudar como o jurista age, se comporta e trabalha.
Entender cultura é ir além de usar tecnologia, pufes coloridos, design thinking, de achar que basta colocar um colete estiloso para criar rapport com um jovem millennial. Mudar cultura é: em toda hora, todo lugar, a cada e-mail, sempre que se comunicar ou elaborar uma frase, embutir empatia, propósito, profundidade, curiosidade, inteligência emocional, colaboração e espírito empreendedor, por exemplo. Essas, sim, são virtudes cada vez mais presentes em negócios de todas as indústrias – e não será diferente para o ambiente jurídico. Demora, é doloroso e bastante desgastante superar os próprios limites para ser um profissional diferente. Contudo, sinto informar que esse tipo de postura será cada vez mais essencial.
Mais do que adaptar a ciência jurídica às novas tecnologias, precisamos revisitar a posição de profissionais do direito neste famigerado mundo 4.0. Antes de sistemas tecnológicos avançados, é necessário trazer noções de UX, eficiência, design, agilidade e informalidade – só para começar. Entender conceitos que há muito tempo são praticados em outras indústrias e, em verdadeira interdisciplinaridade, aplicá-los ao próprio cotidiano, descendo da falsa ideia de que a prática do direito é intocável demais para sofrer mutações. Valorizar o tempo e o dinheiro dos indivíduos envolvidos, entregando a melhor experiência que puderem ter.
O operador do direito relevante no futuro não será o que superar um sistema de inteligência artificial; será o que souber se portar em um mundo transformado por novos valores, buscando agregar e compreendendo o que esperam os outros a seu redor. O futuro do direito não é um algoritmo, é justamente o contrário: é um ambiente em que pessoas devem entender e se relacionar com pessoas, sejam estas clientes, partes, réus ou seja lá qual for o papel que desempenhem. Essa é a essência da inovação.
Por Victor Cabral Fonseca
Fonte: https://www.lexmachinae.com/2018/12/27/o-futuro-do-direito-mudanca-estamos-falando/
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