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As regras previstas no projeto do Governo Digital, cujo texto já foi aprovado no Congresso e aguarda sanção presidencial, acenderam o sinal amarelo de especialistas em liberdade de expressão e em empresas que trabalha com dados públicos. O texto permite a cobrança por dados públicos “no caso de acesso tipicamente corporativo, contínuo, com excessiva quantidade de usuários e requisições simultâneas”. Para Fabro Steibel, diretor do ITS Rio, a proposta não faz o menor sentido e cria uma espécie de “pedágio dos dados abertos” ao prever o pagamento sob demanda de um serviço público que, por definição, deve ser gratuito.
A possibilidade de cobrança está prevista no §3º artigo 29 do PL 317/2021, que dispõe sobre regras e instrumentos do Governo Digital: “É facultado aos prestadores de serviços e aos órgãos e entidades públicos que tenham por objeto a execução de serviços de tratamento de informações e processamento de dados, em relação a dados abertos já disponibilizados ao público e devidamente catalogados de acordo com o art. 29 §2º XI, a cobrança de valor de utilização, no caso de acesso tipicamente corporativo ou institucional, contínuo, com excessiva quantidade de usuários e requisições simultâneas, grande volume de dados e processamento em larga escala”.
A inclusão desse dispositivo foi uma demanda do governo durante a articulação para aprovar o projeto na Câmara e foi preservado pelo Senado. “Recebemos a solicitação com um pouco de receio, mas conseguimos chegar a um texto que delimita bem esse ponto, sem prejudicar a transparência, sem prejudicar startups que fazem mineração de dados públicos”, disse o deputado Felipe Rigoni (PSB-ES), relator do projeto na Câmara. “Só [haverá cobrança] de startups que solicitam dados de uma maneira muito específica”.
O diretor do ITS Rio, Fabro Steibel, avalia que esse dispositivo vai na contramão dos modelos adotados em todo o mundo. “O problema é que ele cria uma barreira para algo que é público”, afirma. Teremos casos em que o governo terá que pagar para o próprio governo”, avalia. “É um ‘pedágios dos dados abertos”.
Steibel destaca que só o governo tem acesso a determinados dados e, por isso, não pode cobrar por eles, porque concobrar por eles, porque configura monopólio. “Se o Brasil quer ser ponta em inovação de startups, o que está se fazendo é cortando acesso à principal fonte de dados”, alerta.
Para Juliana Cesario Alvim, professora da Faculdade de Direito da UFMG, doutora e mestre em Direito Público pela UERJ, esse dispositivo é muito genérico. “Não há definição do que o dispositivo quer excepcionar, os termos usados são muito amplos”, avalia. “E o dispositivo não mostra de que forma ele contribui para os fins que o próprio projeto de lei se propõe a atingir”, destaca.
O projeto de lei diz, no artigo 1º, que tem como objetivo a criação de regras e instrumentos “para o aumento da eficiência da administração pública, especialmente por meio da desburocratização, da inovação, da transformação digital e da participação do cidadão”.
Alvim lembra que a Lei de Acesso à Informação já versa sobre prazos e informações de sigilo referentes a dados públicos. “Esse dispositivo [da cobrança] destoa muito, até porque o ordenamento jurídico brasileiro reconhece em várias oportunidades que a cobrança pode ser um empecilho ao exercício de direitos”, lembra.
O projeto também preocupa o setor de LawTechs. Para Daniel Marques, diretor executivo da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs (AB2L), embora a ideia do projeto como um todo seja positiva, a parte do texto que prevê a cobrança pelo acesso a dados públicos é contrária às recomendações da OCDE e à lógica internacional.
“O projeto desencoraja o uso de dados abertos, caminho reverso de diversos países como Estados Unidos e Canadá que criaram agências públicas que facilitam o acesso a dados”, critica Marques. “Dados públicos abertos servem como infraestrutura e permitem o desenvolvimento de inúmeros novos negócios.”
Além disso, para o diretor da AB2L, o projeto atenta contra os princípios da administração pública ao impor restrições à publicidade, quebrar a impessoalidade ao criar um desequilíbrio para quem tem mais recursos ter melhor acesso a serviços públicos e obstar a eficiência ao criar uma nova barreira de acesso.
Cesario Alvim lembra que, no ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou inconstitucional a Medida Provisória 928/2020. A MP previa que ficariam suspensos os prazos de resposta a pedidos de acesso à informação nos órgãos públicos cujos servidores estivessem sujeitos a regime de quarentena, teletrabalho ou equivalentes, e que dependiam de acesso presencial de agentes públicos encarregados da resposta.
Ainda de acordo com a MP, não seriam válidos recursos contra a negativa de resposta. Caso o cidadão tivesse seu pedido negado ou não respondido, deveria repetir o pedido em até dez dias após o fim da situação de calamidade pública, que foi em dezembro.
“A Constituição Federal consagrou expressamente o princípio da publicidade, um dos vetores mandatórios para os Três Poderes. A transparência, que os gestores públicos têm obrigação de seguir, principalmente num momento em que licitações não são exigidas para compras de inúmeros materiais, é uma importância maior ainda prestar as informações”, destacou o relator da ação direta de inconstitucionalidade, ministro Alexandre de Moraes. “A publicidade e transparência são absolutamente necessárias para fiscalização dos órgãos governamentais. O acesso à informação é verdadeira garantia instrumental do pleno exercício democrático”.
O deputado Felipe Rigoni disse ao JOTA que o dispositivo não diminui o grau de transparência do poder público porque essa cobrança será realizada somente quando o órgão público tiver que lidar com uma demanda alta, com a necessidade de mobilizar pessoal.
“De maneira nenhuma [há diminuição de transparência]”, afirmou.
“A lei trata de dados públicos já disponibilizados e pode haver cobrança somente se uma empresa quiser esses dados de uma maneira específica, com uso contínuo, em tempo real etc.”, explicou o deputado. Segundo o parlamentar, demandas especícas não serão cobradas.
Por exemplo, jornalistas que fazem matérias com o uso da Lei de Acesso à Informação (LAI) não terão que pagar nenhuma cobrança, justifica o parlamentar. Segundo Rigoni, da forma como foi aprovada a lei, a definição do que é “uso contínuo e quantidade excessiva” vai depender de regulamentação do governo ou da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).
ÉRICO OYAMA – Repórter em Brasília. Cobre o Congresso Nacional, Ministério da Economia e temas ligados a
relações institucionais e governamentais (RIG). Antes, foi editor da rádio BandNews FM e repórter da revista
Veja. E-mail: [email protected]
Fonte: Jota
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