Será que há mesmo uma descontinuidade entre o homem e as máquinas?
A relação entre computação e Direito é percebida, pelos juristas, como algo extremamente recente. Mas esses laços são bem mais antigos e se confundem com a própria fundação do Direito moderno. Hobbes, por exemplo, em O Leviatã, partia da premissa fundamental, para toda fundamentação científica da política e do Direito, de que o raciocínio se reduzia à computação, o que se aplicava não só aos números, mas a qualquer área do conhecimento, uma vez que a lógica nada mais seria do que a adição de palavras para criar afirmações e afirmações para formar silogismos. Leibniz, jurista de formação, acreditava que o Direito não passava de uma combinatória de conceitos e que a identificação daqueles conceitos mais básicos a serem combinados seria a chave para edificar todo o direito natural e codificar o corpus juris civilis, de modo que a solução de todo conflito poderia se resumir a um cálculo sobre as combinações possíveis da presença e ausência daqueles conceitos na descrição do caso. Chegou a propor que cada conceito básico deveria ser representado por um número primo, que, por sua vez, poderia ser formulado em uma aritmética baseada em apenas dois algarismos (0,1). Após sua morte, seus manuscritos para edificação daquilo que chamou de Codex, foram reunidos na Universidade de Halle, onde, pouco mais tarde, estudaria o jurista Carl Gottlieb Svarez, um dos principais nomes na formulação do Allgemeines Landrecht fur die preussischen Staaten, a primeira codificação do Direito alemão.
Esses traços da “computação” na própria estrutura do Direito passam desapercebidos ao jurista de hoje, que tende a associar esse termo àquilo que é processado por uma máquina composta de metal, plástico e circuitos elétricos. Não surpreende que veja com muita reserva a hipótese de seu labor intelectual poder ser executado por algo desse tipo. Aliás, a metáfora do robô, quando empregada por juízes, tem uma conotação negativa, em geral para desqualificar uma decisão como formalista, ou uma testemunha como manipulada, ou, ainda, para atenuar a responsabilidade do acusado. Ou seja, para indicar incapacidade de deliberação autônoma.
A inteligência artificial (IA) traz um choque para essa cultura, semelhante ao choque darwiniano. Será que há mesmo uma descontinuidade entre o homem e as máquinas, ou há uma continuidade e gradação, a exemplo do que mostrou a teoria da evolução das espécies? Afinal, o conceito de máquina, do ponto de vista matemático, nada tem a ver com o suporte físico dessas operações, mas se resume a um conjunto de funções abstratas ligando informações recebidas (inputs), com mudanças de disposição (estados) e execução de ações (outputs).
Assim, o jurista é levado, de um lado, a considerar quais de suas tarefas poderiam ser realizadas por agentes eletrônicos, ou seja, o que a inteligência artificial pode fazer pelo Direito (levantando uma nova área de pesquisa, que chamo de Inteligência Artificial para o Direito, ou IA&Direito). De outro, é provocado a se preocupar com as implicações jurídicas decorrentes da entrada desses novos agentes nas relações econômicas e sociais (criando outra nova área de pesquisa, que podemos chamar de Direito da Inteligência Artificial, ou Direito da IA). O interessante dessas novas áreas está na sua intrínseca interdisciplinaridade. IA&Direito não pode ser reservada aos engenheiros ou cientistas da computação e o Direito da IA não é matéria só para juristas.
Na Alemanha já se fala na necessidade de formação de uma nova categoria de profissionais, os “engenheiros jurídicos” (legal-tech-blog.de, 11 de novembro). Essa visão aponta para uma especialização, seja para engenheiros, seja para juristas já formados. Ela é dirigida ao atendimento imediato de uma demanda crescente por essa capacitação, que, aliás, já começa a aparecer no Brasil.
Mas no futuro (não tão distante) o serviço jurídico de um escritório ou a atuação judicial vai cada vez mais se interligar com a inteligência artificial, de modo que o advogado ou o juiz modelarão sua prestação também participando do design customizado de ferramentas computacionais adequadas às especificidades de seu trabalho. Nesse cenário, não bastará especializar tecnicamente um grupo de profissionais, mas exigirá que todos os juristas estejam cientes, em sua formação básica, das diversas estruturas lógicas (formais, matemáticas) de suas inferências na interpretação de normas jurídicas ou de sua argumentação adversativa. Por outro lado, os cientistas da computação e engenheiros também precisam, em sua formação, entender essa lógica própria da linguagem normativa. Afinal, os agentes eletrônicos inteligentes deverão incorporar a observação do ordenamento jurídico em seu design. Em vez de aprender noções de Direito Civil, Penal etc., como normalmente ocorre nos cursos de Direito para outras unidades, os engenheiros e cientistas da computação ganharão mais ao conhecer a estrutura lógica de sistemas legais e dos diferentes tipos de normas jurídicas, a relação hierárquica entre normas, a potencialidade de conflitos e lacunas, como extrair regras de precedentes, qual a estrutura do sistema de adjudicação, quais são os principais tipos de documentos jurídicos e como se estruturam seus argumentos, e, por fim, como se opera o jogo argumentativo adversativo em um processo. Ou seja, juristas, engenheiros e cientistas da computação devem aprender uma linguagem comum, a linguagem das lógicas jurídicas, de modo que possam trocar e somar seus conhecimentos.
Quando falo de lógicas subjacentes às inferências interpretativas dos juristas ou à dinâmica adversarial da argumentação, é importante atentar para o plural. O jurista limita a lógica à ideia de subsunção (do fato à norma), com uma compreensão que não vai muito além da silogística aristotélica ou de noções rudimentares de lógica clássica, ou ainda da argumentação como estudo das falácias. Ficou preso ao estado da arte da lógica vigente há dois mil anos. Qualquer menção à lógica formal encontra resistência, que a identifica, por ignorância, com “formalismo jurídico”. Ou seja, o jurista simplesmente ignora a revolução ocorrida na lógica no século XX, com o surgimento das lógicas não clássicas e o desenvolvimento da teoria da computação.
Isso cria uma limitação séria para o jurista lidar com a realidade da IA. A inteligência artificial é, em grande parte, lógica aplicada à representação de conhecimento e inferências de agentes inteligentes. Ou melhor, lógicas aplicadas. E, quando aplicadas ao Direito, devem ser capazes de representar diferentes tipos de inferências envolvidas na atividade de interpretação e argumentação, sejam elas inferências dedutivas (quando ocorre a subsunção ou derivação de normas cujo conteúdo está implícito outras normas válidas), indutivas (quando o juristas generaliza propriedades gerais de regras na identificação de princípios jurídicos), abdutivas (quando o jurista formula hipóteses sobre a intenção do legislador ou lida com presunções) ou dialógicas (quando o jurista identifica quais os argumentos justificados em um conjunto de argumentos em relação mútua de ataque e suporte). Há diferentes lógicas para representar diferentes dimensões desses processos de inferência.
Também é importante entender que IA não se resume a machine learning, nem se confunde com produtos das chamadas lawtechs, como alguns textos recentes divulgados no meio jurídico superficialmente e mesmo equivocadamente indicam. Nesse aspecto, é importante destacar que técnicas empregadas com processamento de linguagem natural e aprendizado de máquina empregados no Direito raramente incorporam a representação de conhecimento jurídico. É absolutamente fundamental que a IA&Direito incorpore esse conhecimento para almejar aplicações mais ambiciosas. Essa incorporação serve não só para tornar suas ferramentas mais eficientes, mas, sobretudo, para que as ações e decisões jurídicas automáticas possam ser explicadas e justificadas pelo próprio agente eletrônico, o que, hoje, ainda é um grande desafio. Diferentemente de outras áreas de atuação e emprego da IA, há, no campo do Direito, uma exigência particular: decisões jurídicas somente ganham legitimidade na medida em que sejam capazes de explicitar suas razões. Lidar juridicamente com decisões de agentes eletrônicos com impactos sobre direitos individuais, por outro lado, abre uma série de questões para o Direito da IA.
O desafio fica mais claro se entendermos a distinção entre a perspectiva de design e a perspectiva intencional para explicar o comportamento das máquinas. Quando Kasparov disputa uma partida com o Deep Blue, certamente não planeja seus movimentos fazendo suposições sobre quais das milhares de partidas de mestres armazenadas em sua base de dados serão correlacionadas estatisticamente para definir as dez melhores jogadas subsequentes. Ou seja, ainda que conheça os detalhes da programação, Kasparov não adota a perspectiva de design (as instruções do programa) enquanto disputa a partida, pois tem uma capacidade de processamento consciente de dados muito inferior. Ele atribui intencionalidade ao computador, tratando-o como se fosse um oponente humano, com planos, crenças e estratégias. Agora, imagine um computador que tome decisões jurídicas simples, com base em algum algoritmo usando machine learning que classifique sua proximidade com decisões anteriores. Os elementos de correlação utilizados para indicar o ato decisório podem discrepar muito daquilo que o jurista entende por motivação de uma decisão. Na International Conference on Artificial Intelligence and Law realizada neste ano em Londres, por exemplo, um dos trabalhos apresentou um sistema baseado em machine learning que predizia com elevado grau de acerto se dois juízes da Suprema Corte dos EUA discordariam em seus votos. Mas as três variáveis mais relevantes de correlação para essa predição empregadas pelo algoritmo foram, surpreendentemente, a posição em que sentavam no tribunal, o tamanho do voto e o número de citações. A predição nada tinha a ver com a matéria discutida ou as conhecidas convicções conservadoras e progressistas dos juízes examinados.
Além da preocupação com a formação do jurista, as faculdades de Direito, Engenharia e Computação devem estar preparadas para produzir pesquisa de ponta no desenvolvimento de IA&Direito e Direito de IA. Dentro desse espírito, um grupo de professores de engenharia, ciência da computação, filosofia e direito da USP fundou uma associação independente, sem fins lucrativos, chamada Lawgorithm, para articular a pesquisa acadêmica e a formação universitária com as iniciativas práticas, nos setores público e privado, de desenvolvimento de ferramentas computacionais para a atividade jurídica, bem como para refletir sobre as implicações jurídicas, sociais, econômicas e culturais da IA em geral. Outras iniciativas também começam a surgir no país, com associações das chamadas lawtechs ou em faculdades de Direito e deCciência da Computação e Engenharia, que começam a buscar aproximação mútua.
O importante é que a pesquisa e o ensino universitários estejam abertos à interdisciplinaridade e à conjugação entre essas ciências, a matemática e o Direito, que, embora estivessem intrinsicamente ligadas em sua fundação moderna, como produtos exatamente da mesma matéria, infelizmente passaram a ser vistas como matérias imiscíveis. É hora de repensar.
Por Juliano Maranhão
Fonte: https://www.jota.info/artigos/inteligencia-artificial-e-o-ensino-do-direito-19122017
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