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Há alguns meses houve a primeira onda de espanto com o fenômeno das chamadas NFTs. O termo é palavroso e literalmente significa “tokens não fungíveis”. Trocando em miúdos é a capacidade de transformar o que por natureza é abundante em escasso.
Imagine uma foto digital que está no seu celular. Se você enviar essa foto para todos os seus contatos no WhatsApp, você continuará tendo a mesma foto e todos os seus contatos também a terão. É como nas palavras de Thomas Jefferson ao comparar as ideias à luz de uma vela: “Aquele que acende sua vela na minha recebe a luz sem escurecer a mim”.
Já a NFT permite recriar essa escassez. Por exemplo, permite pegar uma das fotos que está no seu celular e torná-la única. Como? Criando uma assinatura digital em cima dela. Essa assinatura fica então armazenada em um registro público digital que pode ser acessado e verificado por qualquer pessoa. Esse registro, que é imutável, chama-se blockchain.
Veja obras de arte comercializadas com o certificado digital NFT
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Com isso, mesmo que haja mi lhões de cópias daquela foto, só uma será a cópia assinada. Todas as outras serão genéricas. Esse processo tem levado a uma “corrida do ouro” especulativa. Por exemplo, o artista norte-americano conhecido como Beeple vendeu uma NFT do seu trabalho por US$ 69 milhões (R$ 360 mi), consistindo em um conjunto de imagens digitais.
O curioso é que cópias idênticas dessas imagens estão espalhadas pela internet para quem quiser e não valem um tostão. Mas a cópia assinada digitalmente, que é única, essa custou US$ 69 milhões.
Até aqui a história é conhecida. As NFTs seriam apenas um novo jeito de “colecionar”. No caso agora, colecionar objetos digitais. No entanto, o impacto das NFTs pode ser muito mais profundo. Esse impacto foi resumido de forma elegante pela professora australiana McKenzie Wark. Ela disse que as NFTs “são muito menos sobre ter a propriedade sobre algo que ninguém e muito mais sobre ter a propriedade sobre algo que todo mundo tem”.
O impacto dessa frase é gigantesco e vale uma meditação prolongada.
A cultura da internet das duas últimas décadas tem sido caracterizada por espalhar na rede objetos digitais apócrifos que aparentam não ter dono, procedência ou autoria. Esses objetos têm nome. São os “memes”.
A característica dos memes é justamente sua capacidade de se espalhar velozmente e passar por mutações e recombinações na medida em que isso acontece. Eles são “o que todo mundo tem” que McKenzie se referiu na sua frase.
As NFTs podem virar esse processo de cabeça para baixo. Podem permitir estabelecer a autoria original de um meme e de suas mutações e permitir que todos seus usos e sua disseminação continuem livres, mas seja milimetricamente monitorável (traceability).
O dono de uma NFT que virar meme poderá, por exemplo, decidir cobrar pelo seu uso. Mais do que isso, podem surgir associações para cobrar pelo uso de memes e suas mutações nas plataformas da internet, uma espécie de Ecad dos memes, distribuindo os valores para os respectivos criadores.
Mais do que isso, as NFTs podem ser utilizadas para medir e monitorar o alcance de conteúdos na internet, incluindo música e filmes. Em suma, algo que no início foi visto como curiosidade especulativa pode se tornar a raiz de uma transformação profunda nos modos de produção culturais.
Já era esnobar ou ignorar criptomoedas
Já é esnobar ou ignorar NFTs
Já vem se arrepender de ter esnobado ou ignorado NFTs
Texto original de Ronaldo Lemos, publicado pela Folha
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