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Daniel Becker e Kizzy Mota
“Abrimos mão dos nossos dados privados em troca de vídeos engraçados de gatinhos.”
Yuval Noah Harari
A privacidade digital está entre os temas mais importantes do novo mandato da Suprema Corte dos EUA, que começou dia 2 de outubro. Um forte candidato a caso mais importante do ano é Carpenter v. United States, registrado sob nº 16-402[1], o qual envolve a privacidade de dados de localização mantidos pelas empresas de telefonia celular.
Nathan Freed Wessler, advogado da American Civil Liberties Union (ACLU), considera esse caso o mais importante de nossa geração acerca da incidência da Quarta Emenda[2].
A ACLU integra a defesa de Timothy Carpenter, que foi condenado criminalmente por uma série de assaltos a mão armada com base, em parte, nos registros fornecidos pela sua operadora de celular, os quais mostravam seus movimentos ao longo de vários meses. A polícia obteve mais de doze mil pontos de localização do réu em um período de quatro meses[3], o que levou a uma pena a 116 anos de prisão[4]. Carpenter disse que os promotores, ao não obterem um mandado judicial para acessarem as informações, violaram a Quarta Emenda, que impede buscas e apreensões não razoáveis[5]. O caso está previsto para ser julgado no dia 27 de novembro.
A estrutura normativa que disciplina privacidade e vigilância está baseada na ideia de que o conteúdo das comunicações é protegido pela Quarta Emenda da Constituição Americana. Essa é a regra adotada desde o Século XIX para cartas postadas e também aos casos de registros de ligações telefônicas desde 1979[6]. Contudo, no caso Carpenter é discutido se a regra contemplaria ou não os metadados, devendo a Suprema Corte decidir como interpretará a moderníssima questão. Os metadados, etimologicamente, significam dados sobre dados; são dados que descrevem outros dados[7].
A relevância do caso reside na controvérsia acerca dos limites da vigilância a partir da Quarta Emenda. Para tanto, a Suprema Corte deve discutir se a referida emenda abarca todos os casos de vigilância e privacidade tais como, por exemplo, vigilância visual, obtida por meio de registros telefônicos tradicionais, troca de e-mails, registros de cartões de crédito e outros[8].
Carpenter, em seu recurso, questionou se, pela interpretação da Quarta Emenda, é possível utilizar o histórico de ligações telefônicas para obter a localização e os movimentos do usuário do telefone por[9]. Já os Estados Unidos questiona se, por meio de uma ordem judicial baseada no artigo 18 U.S.C. 2703(d)[10], a aquisição do histórico de ligações telefônicas junto à empresa de telecomunicações telefônicas viola os direitos da Quarta Emenda do consumidor.
De todo modo, as decisões anteriores do Supremo Tribunal devem dar a Timothy Carpenter motivos de otimismo. Ao decidir outro caso, a Corte limitou a capacidade do governo de usar dispositivos GPS para acompanhar os movimentos das pessoas e exigiu um mandado judicial para pesquisar celulares[11].
O caso ACLU v. Clapper iniciou o debate mais significativo sobre privacidade e vigilância pelo governo em décadas. As revelações de Edward Snowden demonstram o funcionamento da Agência de Segurança Nacional Americana (NSA) e de que forma a vigilância em massa é realizada sobre dados de americanos e estrangeiros[12]. Conforme revelado pela mídia na época, as empresas de telecomunicações entregavam diariamente para NSA os registros das ligações feitas pelos seus consumidores. O programa de vigilância implementado pela ageância extrapolava os registros telefônicos e a metadata, ao revés do que argumentava o governo, revelando muito mais do que apenas as ligações realizadas[13].
É preciso salientar, entretanto, que, embora a divulgação de Edward Snowden em 2013[14] da coleta de metadados em massa tenha originado um debate público substancial sobre a constitucionalidade dessa vigilância, a primeira instância (United States District Court Southern District of New York) entendeu que, pela “doutrina de terceiros” (third party doctrine)[15], não houve violação da Constituição Americana[16]. Essa doutrina ensina que se você fornece voluntariamente informações para terceiros, a Quarta Emenda não impede que as autoridades a acessem sem mandado judicial. Como afirmado pela Suprema Corte em Smith v. Maryland, ao fornecer suas informações voluntariamente, você perde sua legítima expectativa de privacidade[17].
De todo modo, os impactos da denúncia de Snowden resultaram na aprovação do Freedom Act em 2015, que reformou a NSA e, entre diversas previsões, encerrou a coleta massiva de metadados dos cidadãos americanos[18].
Entendemos que desconsiderar a privacidade das comunicações de forma orwelliana não é adequada para a era digital. Atualmente, as pessoas divulgam, involuntariamente e a todo tempo, os números de telefone, os URLs que visitam, os endereços de e-mail com os quais se correspondem, bem com os produtos que compram, vídeos que assistem, etc[19].
A tecnologia não só aumentou a qualidade e a quantidade de dados que fornecemos a terceiros, como também massificou a capacidade do governo de colecioná-los, agregando os dados coletados de diferentes fontes e extraindo os dados agregados para seletores pré-determinados, incluindo indivíduos específicos, tipos de transações ou outros negócios físicos ou transacionais padrões. Hoje, compartilhamos muito mais dados com terceiros do que na década de 1970, quando a doutrina de terceiros foi desenvolvida[20]. Além disso, os governos estão em uma posição muito melhor para usar esses dados com o fim de obter informações sobre os cidadãos.
O Centro Brennan, em conjunto com a Fundação Fronteira Eletrônica, o Projeto de Constituição, a Associação Nacional de Advogados de Defesa Penal e a Associação Nacional de Defensores Federais, apresentou uma série de pareceres no caso Carpenter argumentando que os dados de localização de telefone celular são informações privadas, merecendo proteção da Quarta Emenda. Em 2016, o Tribunal de Apelações do Sexto Circuito (United States Court of Appeals for the Sixth Circuit) chegou à conclusão oposta, aplicando a doutrina de terceiros para considerar que a aplicação da lei não precisa de um mandado judicial para os dados expostos às operadoras de internet. A Supremo Corte admitiu o processamento do caso, levantando a possibilidade de os juízes limitarem ou derrubarem a doutrina à luz das novas tecnologias de comunicação[21].
O parecer mais recente do Centro Brennan explica o que os dados de localização do telefone celular são, como eles são criados e como podem ser combinados para fornecer informações detalhadas sobre as atividades mais particulares de um indivíduo. A onipresença e a sofisticação dos celulares modernos levaram a um aumento da disponibilidade e da precisão dos dados de localização. Os provedores de serviços continuam a instalar mais torres de celulares e os usuários transmitem dados cada vez mais frequentemente, gerando automaticamente registros que podem identificar a localização de um indivíduo com um nível de precisão que rivaliza com o rastreamento GPS.
Os prestadores de serviços armazenam a informação por até cinco anos, criando uma oportunidade sem precedentes para reconstruir movimentos passados com notável precisão. A depender da decisão da Suprema Corte, cada suspiro dado pelos usuários de telefonia móvel poderá ser observado pelas autoridades governamentais – no melhor estilo The Police.
O novo mandato da Suprema Corte dos Estados Unidos está repleto de grandes casos suscetíveis de provocar conflitos bruscos. Um deles tem o potencial de remodelar a política americana. Outro vai atacar a questão se as empresas podem se recusar a atender clientes homossexuais em nome da liberdade religiosa. A Corte também irá apreciar casos trabalhistas importantes, incluindo um sobre o poder dos empregadores de prevenir que seus empregados se unam para processá-los.
A Corte já havia retornado com força total em abril, quando o Juiz Neil. M Gorsuch substituiu o falecido Juiz Scalia, depois de uma intensa disputa sobre o cargo que durou mais de um ano. Nos poucos casos nos quais o Juiz Gorsuh participou, ainda no último período, ele votou junto com os membros mais conservadores, os Juízes Clarence Thomas e Samuel A. Alito Jr. O primeiro mandato completo do Juiz Gorsuch vai trazer seu posicionamento para o centro dos holofotes.
Ao mesmo tempo, o Juiz Anthony M. Kennedy, que é mais suscetível a tomar decisões alinhadas, ideologicamente, ao centro, está se movendo para a esquerda. De acordo com os dados compilados por Lee Epstein, professor de direito e cientista político na Universidade de Washington em St. Louis, os votos proferidos pelo Juiz Kennedy no período do Juiz Scalia, foram os mais liberais que se tem notícia feitos por um Juiz da Suprema Corte desde os anos 1960.
O Juiz Kennedy, por sua vez, aos 81 anos, já sinalizou que está pensando na aposentadoria, cabendo ao presidente americano Donald Trump nomear o seu substituto. Dessa maneira, a Corte receberá um Juiz ideologicamente alinhado ao Juiz Gorsuch, deixando-a com uma maioria solidamente conservadora e empurrando o Juiz John G. Roberts Jr. para a posição mediana.
Nas palavras de Elizabeth Slattery, advogada da Heritage Foundation, a próxima temporada da Suprema Corte promete ser importante para os livros de história[22].
[1]OYEZ. Carpenter v. United States. Oyez. Disponível em www.oyez.org/cases/2017/16-402 – Acesso em 20.10.2017.
[2] “Amendment IV – The right of the people to be secure in their persons, houses, papers, and effects, against unreasonable searches and seizures, shall not be violated, and no warrants shall issue, but upon probable cause, supported by oath or affirmation, and particularly describing the place to be searched, and the persons or things to be seized.”
[3] WESSLER, Nathan Freed. The Supreme Court will decide whether police need a warrant for sensitive cell phone data. American Civil Liberties Union. Disponível em: https://www.aclu.org/blog/privacy-technology/location-tracking/supreme-court-will-decide-whether-police-need-warrant – Acesso em 20 de out. 2017.
[4] FELTON, Ryan. Court rules warrantless collection of cellphone location data constitutional. The Guardian. DisponGuardim: https://www.theguardian.com/us-news/2016/apr/14/court-rules-warrantless-collection-of-cellphone-location-data-constitutional – Acesso em 20 de out. 2017.
[5] HURLEY, Lawrence. Suprema Corte dos EUA decidirá importante caso de privacidade em telefonia móvel. Reuters. Disponível em: https://br.reuters.com/article/internetNews/idBRKBN18W2TK-OBRIN– Acesso em 20 de out. 2017.
[6] MATACONIS, Doug. Supreme Court Accepts Fourth Amendment Case Involving Location Tracking Of Your Smartphone. Outside the Beltway. Disponível em: http://www.outsidethebeltway.com/supreme-court-accepts-fourth-amendment-case-involving-location-tracking-of-your-smartphone/ – Acesso em 22 de out. 2017
[7] MARR, Bernard. What is metadata? A simple guide to what everyone should know. DataInformed. Disponível em: http://data-informed.com/what-is-metadata-a-simple-guide-to-what-everyone-should-know/ – Acesso em 22 de out. 2017.
[8] KERR, Orin. Supreme Court agrees to hear ‘Carpenter v. United States,’ the Fourth Amendment historical cell-site case. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/news/volokh-conspiracy/wp/2017/06/05/supreme-court-agrees-to-hear-carpenter-v-united-states-the-fourth-amendment-historical-cell-site-case/?utm_term=.c1ae3681032d – Acesso em 22 de out. 2017.
[9] KERR, Orin. Supreme Court agrees to hear l cell-site case춺ted States,rt agrees to hear l cell-site case춺ell-site case. Dispone case ahttps://www.washingtonpost.com/news/volokh-conspiracy/wp/2017/06/05/supreme-court-agrees-to-hear-carpenter-v-united-states-the-fourth-amendment-historical-cell-site-case/?utm_term=.c1ae3681032d ttps://www.washingtonpo
[10] “(d)Requirements for Court Order.— A court order for disclosure under subsection (b) or (c) may be issued by any court that is a court of competent jurisdiction and shall issue only if the governmental entity offers specific and articulable facts showing that there are reasonable grounds to believe that the contents of a wire or electronic communication, or the records or other information sought, are relevant and material to an ongoing criminal investigation. In the case of a State governmental authority, such a court order shall not issue if prohibited by the law of such State. A court issuing an order pursuant to this section, on a motion made promptly by the service provider, may quash or modify such order, if the information or records requested are unusually voluminous in nature or compliance with such order otherwise would cause an undue burden on such provider”.
[11] VLADECK, Stephen. The Supreme Court Phone Location Case Will Decide the Future of Privacy. Motherboard. Disponível em: https://motherboard.vice.com/en_us/article/59zq5x/scotus-cell-location-privacy-op-ed – Acesso em 22 de out. 2017.
[12] LYON, David. As apostas de Snowden: desafios para entendimento de vigilância hoje. Sociedade Brasileiro para o Progresso da Ciência. Disponível: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252016000100011 – Acesso em 22 de out. 2017.
[13] TOOMEY, Patrick e YACHOT, Noa. Why Today’s Landmark Court Victory Against Mass Surveillance Matters. American Civil Liberties Union. Disponível em: https://www.aclu.org/blog/national-security/privacy-and-surveillance/why-todays-landmark-court-victory-against-mass?redirect=blog/speak-freely/why-todays-landmark-court-victory-against-mass-surveillance-matters – Acesso em 22 de out. 2017.
[14] MERCHANT, Brian. The Many Ways That Obama Has Been Spying On You. Motherboard. Disponível em: https://motherboard.vice.com/en_us/article/mggynx/the-many-ways-obamas-nsa-has-been-spying-on-you – Acesso em 22 de out. 2017.
[15] VLADECK, Stephen. The Supreme Court Phone Location Case Will Decide the Future of Privacy. Motherboard. Disponível em: https://motherboard.vice.com/en_us/article/59zq5x/scotus-cell-location-privacy-op-ed – Acesso em 22 de out. 2017.
[16] Em segunda instância, a coleta massificada dos metadados dos cidadãos foi considerada ilegal. (ROBERTS, Dan. NSA mass phone surveillance revealed by Edward Snowden ruled illegal. The Guardian. Disponível em: https://www.theguardian.com/us-news/2015/may/07/nsa-phone-records-program-illegal-court – Acesso em 22 de out. 2017.
[17] SENOR, John Villa. What you need to know about the third-party doctrine. The Atlantic. Disponível e: https://www.theatlantic.com/amp/article/282721/ – Acesso em 22 de out. 2017.
[18] LYON, David. As apostas de Snowden: desafios para entendimento de vigilância hoje. Sociedade Brasileiro para o Progresso da Ciência. Disponível: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252016000100011 – Acesso em 22 de out. 2017.
[19] VLADECK, Stephen. The Supreme Court Phone Location Case Will Decide the Future of Privacy. Motherboard. Disponível em:https://motherboard.vice.com/en_us/article/59zq5x/scotus-cell-location-privacy-op-ed – Acesso em 22 de out. 2017.
[20] MELO, João Ozorio de. Justiça dos EUA coloca na balança eficiência policial versus privacidade. https://www.conjur.com.br/2017-jun-12/justica-eua-coloca-balanca-eficiencia-policial-versus-privacidade – Acesso em 22 de out. 2017.
[21] BRENNAN CENTER. Carpenter v. United States. Brennan Center. Disponível em: https://www.brennancenter.org/legal-work/usa-v-timothy-carpenter-amicus-brief – Acesso em 20 de out. 2017.
[22] SLATERRY, Elizabeth. Overview of the Supreme Court’s 2017–2018 Term. The Heritage Foundation. Disponível em: http://www.heritage.org/courts/report/overview-the-supreme-courts-2017-2018-term – Acesso em 20 de out. 2017.
Por Daniel Becker e Kizzy Mota
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