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Nas últimas semanas, voltou à discussão em cenário nacional a atuação que algumas seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil têm tido no combate à inovação fundada em análise de dados que algumas legaltechs têm proporcionado ao mercado de consumidores lesados por companhias aéreas.
Isso porque foi proferida pela Justiça Federal do Rio de Janeiro uma sentença considerando que a Liberfly, startup atuante no mercado de compra de claims, atividade fundamentada em análise de dados estatísticos gerados pela própria legaltech especificamente forjada para, entre outros, casos inerentes a danos causados a consumidores por companhias aéreas, estaria atuando “como se advogado fosse” e praticando o que se denominou de publicidade irregular e consequente captação de clientela em formato contrário aos ditames que guiam a advocacia.
Em breves palavras, a sentença aplicou a uma sociedade empresária ditames apenas aplicáveis a advogados e sociedades de advogados, tendo a OAB atuado como se fosse verdadeiro regulador de mercado no caso. Todavia, OAB e sentença equivocam-se na análise do caso sob diversos prismas.
O primeiro e mais latente prisma equivocado por meio do qual foi analisado o caso e a atividade da legaltech em questão diz respeito à própria atividade substantiva da empresa em questão.
O negócio da Liberfly tem por objeto algo muito diverso do que se pintou, uma vez que a dita empresa, procurada por pessoas que tiveram seus direitos feridos, analisa se aos olhos dos dados de jurimetria consolidados sobre aquele determinado tema (e.g. atraso de voo superior a seis horas, extravio de bagagem), o consumidor sairia vencedor de uma disputa em juízo.
Na hipótese de que os resultados estatísticos dos julgados sejam favoráveis, a Liberfly pode vir a fazer uma proposta e adquirir aquele potencial crédito. Negócios jurídicos entabulados sob tais caracteres são expressamente regulados por Código Civil e Código de Processo Civil, nas figuras de cessão de direitos, compras de direitos expectativos e na alienação de coisa litigiosa
Por outro lado, na hipótese de que os resultados estatísticos dos julgados sejam desfavoráveis, a Liberfly certamente não adquirirá aquele potencial crédito. Dito cenário tende a informar consumidores e, inclusive, desestimular o excesso de litígios, uma vez que tais indivíduos já serão desestimulados a levar a juízo casos com baixa probabilidade de sucesso do ponto de vista estatístico.
Qual a diferença entre essa atividade e a compra de qualquer crédito potencial, algo que múltiplos agentes do mercado financeiro (tais como bancos e fundos) fazem? Olha-se um potencial direito, verifica-se o que ele valeria em juízo, com base em análise de dados, e transaciona-se a respeito.
O segundo prisma equivocado de análise do caso diz respeito a um raciocínio enviesado de que empresas atuantes em situações tais como a descrita acima promoveriam litigiosidade. E a resposta para tal dilema é exatamente a oposta, ou seja, de que não há geração artificial de demandas judiciais. Pelo contrário, essa atividade tende a reduzir demandas, uma vez que somente seriam promovidas, pela própria natureza da atividade empresarial, as demandas já analisadas previamente e vistas como corretas pelo próprio Poder Judiciário. Não por outra razão, o percentual de êxito das ações propostas, após essa análise de dados, é absolutamente elevado.
Nesse sentido, empresas que atuam nesse nicho de mercado estariam, em verdade, promovendo função social educativa dos consumidores que se sentem lesados por companhias aéreas. Tudo por meio da análise de dados, o que em momento algum envolve aconselhamento.
O combate buscado pela OAB e deferido pela Justiça Federal do Rio de Janeiro também peca na análise do Direito. A decisão fere princípios constitucionais, notadamente da livre iniciativa e da livre concorrência, e deixa de observar os ditames do Marco Civil da Internet, ao tratar da liberdade de modelo de negócio exercido pela rede mundial de computadores, e da própria Lei da Liberdade Econômica. Exemplo marcante de precedente que privilegiou tais ditames legais dizem respeito à declaração de legalidade dos business de Uber e 99 pelo Supremo Tribunal Federal e por diversos Tribunais Estaduais na disputa relacionada à mobilidade urbana.
Mas não são apenas más as notícias vindas do Judiciário para as empresas que atuam nesse nicho. A Justiça Federal de Brasília, analisando ação também ajuizada pela OAB, desta vez contra a startup Resolvvi, empresa focada na intermediação a ser realizada entre advogados e consumidores lesados por empresas aéreas, deu uma resposta poderosa ao intuito de encerrar uma atividade comercial similar, dizendo que “(a) rede mundial de computadores é rica em sites que direcionam os interessados para a contratação dos mais diversos serviços, inclusive advocacia. Também é rica em informações sobre os mais diversos serviços, inclusive de ordem médica e sanitária. Não é adequado nem aceitável, no contexto do que chamamos de sociedade 5.0, que a OAB possa tolher ou mesmo tangenciar o acesso dos cidadãos à informação sobre seus direitos. Isso não se confunde com exercício da nobre profissão”.
A discussão ainda está longe de acabar, pois as decisões mencionadas estão sujeitas a recursos, mas o fundamental é que se verifique, na substância, a verdadeira atividade das empresas em questão, cuja natureza é análise de dados e conexão de pessoas a conhecimento, de modo que não sejam tolhidas atividades empresariais legítimas e que podem vir a gerar renda, conhecimento e emprego.
Nesse contexto, empresas de tecnologia e associações devem se mobilizar para garantir que esses atores sejam ouvidos em discussões mais amplas. De outro lado, também é importante questionar o papel institucional da OAB, de modo que tal entidade não passe a ser o taxista da vez questionando o transporte intermediado por aplicativos ou os serviços de entregas de correspondência que questionam o e-mail, pois certamente a nova advocacia não buscará combater a inovação, com a qual terá que trabalhar por toda a carreira.
Texto original de Caio Scheunemann Longhi, publicado pela Exame
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