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Opção por órgão em vez de autarquia especial implica no enfraquecimento da instituição
Antes que os fogos de artifício estourassem de norte a sul, no apagar das luzes do governo Temer, no dia 28 de dezembro de 2018, foi publicada a MP 869. A mencionada norma foi um presente de Natal atrasado para departamentos jurídicos, grupos de trabalho, DPOs, áreas de segurança e todos os profissionais envolvidos com a implementação do compliance interno da Lei que trata da proteção de dados pessoais. Isso pois, a MP, em seu art. 65, II[1], expandiu o vacatio legis, abrindo um prazo de mais 6 meses para as corporações se adequarem, com isso, as instituições terão até agosto de 2020 para estarem em conformidade.
Além disso, a MP alterou alguns aspectos da Lei 13.709/2018, incluindo dentre eles o polêmico art. 20 que, anteriormente, dispunha ser necessário que a revisão de decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais, que afetassem os interesses do titular desses, fosse realizada por pessoa natural. Entretanto, com a publicação da MP tal exigência não se faz mais necessária. Nesse sentido, algumas opiniões relevantes a respeito dos impactos e mudanças trazidas pelo novo texto legal já foram publicadas, valendo salientar a análise do professor Ronaldo Lemos[2].
O artigo que aqui se esboça ambiciona analisar os efeitos relacionados com a natureza jurídica da Autoridade Nacional de Dados Pessoais, ANDP. Vale ressaltar que, a MP ainda passará pelo Congresso, o que ensejará um desafio para o novo governo eleito. Ainda assim, as considerações que passamos expor objetivam contribuir com o momento vivenciado.
O art. 55-A criou a ANPD como um órgão da administração pública federal, escolha muito diferente do que havia sido previsto no PL que deu ensejo a Lei 13.709/2018. Dessa forma, a autoridade que nasceria com status de autarquia especial, subitamente foi “rebaixada” a órgão. Apesar do art. 55-B tentar remediar a questão, expressando a autonomia técnica da ANPD, certo é que a alteração da natureza jurídica não se trata de mero debate acadêmico. Os efeitos de a ANPD ser um órgão em vez de uma autarquia especial, natureza jurídica típica das agências reguladoras, implica em reflexos muito práticos que podem impactar substancialmente na regulação do tema.
Isso pois, visto que os órgãos públicos não possuem autonomia, patrimônio próprio e realizam apenas o que é determinado pelo Estado, o enquadramento da autoridade nessa categoria enseja o risco de transformar a nova estrutura em uma entidade autoritária pouco democrática. Explicamos, a autoridade, como grande reguladora dos dados pessoais no Brasil, deveria se revestir do máximo de legitimidade, não devendo sofrer controle total político, como, de fato, poderá ocorrer.
Não se trata de objetivo do presente artigo fazer uma análise acadêmica a respeito da regulação. Porém, de maneira superficial, vale lembrar que tipicamente as autarquias especiais são dotadas de autonomias, o que oportuniza a regulação de maneira técnica e adequada dos temas. Dentre as autonomias ordinárias, podemos mencionar: (i) institucional – estrutural, (ii) funcional – técnica, (iii) operacional, e (iv) financeira. Desse modo, por meio de tais autonomias essas entidades garantem independência e força regulatória, uma vez que por meio delas existe a minimização da interferência política dentro dessas.
É de se observar, ainda, que tais autonomias não são meros caprichos, mas fundamentais para que o poder normativo que elas exercem se legitimem. Como é possível o Executivo assumir a função normativa, típica do Poder Legislativo, e agir de maneira plena sem maiores controles e amarras? Trata-se de um risco a própria divisão de poderes.
Como os dirigentes da nova entidade poderão atuar de forma autônoma sem suas indicações terem passado pelo Legislativo, e sem uma segurança de não perderem seus cargos?
O art. 55-E prevê que os membros do Conselho Diretor somente perderão seus cargos em virtude de renúncia, condenação judicial transitada em julgado ou pena de demissão decorrente de processo administrativo disciplinar. Ou seja, há uma tentativa de reforçar a posição dos dirigentes.
Mas isso não resolve tudo. Do ponto de vista financeiro, por exemplo, a dependência de recursos por parte dos órgãos faz com que esses sofram influência de agentes externos, que por meio do poder monetário mitigam, retaliam e, até mesmo, neutralizam as atividades desses, por meio de contingenciamento ou indisponibilização de recursos. Fato esse, minimizado nas autarquias especiais pela possibilidade de estabelecimento de fontes próprias de recursos, como taxas e multas. Assim, mesmo que o dirigente esteja protegido pelo citado art. 55-E, é possível que esse se force a uma renúncia por falta de recursos para atuar da maneira adequada.
Além disso, quando se trata da estabilidade dos dirigentes de autarquias especiais, quatro pontos são analisados: (i) a previsão de mandatos fixos (ausência de demissão ad nutum); (ii) a escolha, dos mesmos, pautada em critérios que devem ser norteados pela tecnicalidade e não pela decisão político-partidária; (iii) mandatos não coincidentes; e (iv) sabatina pelo Poder Legislativo.
A MP tentou atender em alguma medida esse anseio, ao determinar que o mandato seja fixo de quatro anos e, como exposto anteriormente, só podendo ocorrer o afastamento em virtude de renúncia, condenação judicial transitada em julgado ou demissão decorrente de PAD. No entanto, a norma oportuniza as nomeações de cunho exclusivamente político, uma vez que, não se restou claro quais os critérios para a nomeação dos diretores. Somado a isso, caso o tempo do mandato coincida com os mandatos presidenciais, esses representarão um mecanismo de propagação da política vigente a época, afastando o cunho de especialidade e tecnicidade necessários para esse tipo de autoridade.
Da perspectiva da legitimidade reforçada exigida para a formulação normativa, cabe mencionar que a MP previu a realização de consultas públicas para colher sugestões sobre temas de relevante interesse público na área de atuação da ANPD, art. 55-J, XIII[3], o que não se mostra satisfatório.
Dado que, no que se refere a autarquias especiais, a audiência pública é um instrumento de apoio ao processo decisório, de ampla consulta à sociedade, que precede a expedição de muitos dos seus atos. Por sua vez, a consulta pública é um instrumento administrativo para apoiar as atividades das unidades organizacionais na instrução de processos de regulamentação e fiscalização ou na implementação de suas atribuições específicas[4].
O principal objetivo dos dois instrumentos é colher subsídios e informações junto à sociedade para matérias em análise, bem como oferecer aos interessados a oportunidade de encaminhamento de seus pleitos, opiniões e sugestões relativas ao assunto em questão[5]. Ocorre que, por meio da audiência pública, os interessados podem se manifestar e apresentar comentários e sugestões em relação ao assunto discutido. Por outro lado, na consulta pública os interessados devem acessar as consultas disponíveis nos portais de órgãos federais e fazer contribuições, que quando encerrada a consulta, serão consolidadas em um documento e analisadas pela área competente[6].
Dessa forma, as audiências públicas garantem aos cidadãos o direito à palavra, podendo esses serem ouvidos por seus colegas e também por aqueles que detêm o poder de decisão, garantindo, assim, um espaço de permissão ao povo, para que participe da tomada de decisões. Fato esse que não ocorre, necessariamente, com as consultas públicas, que se voltam mais para instruções de procedimentos e regularização do que para tomada de decisões.
Em paralelo a isso, quando falamos em proteção de dados pessoais, a ANPD centralizará o poder de sanção, prevalecendo sobre outros órgãos que também tenham essa competência. Desse modo, o Direito do Consumidor, assim como outros órgãos de proteção à privacidade, que tangenciem os temas de proteção de dados pessoais, andarão lado-a-lado com a LGPD, pois esses se articularão de maneira a garantir os direitos individuais dos titulares de dados.
Logo, as previsões do art. 55-K, ensejam duas reflexões. A primeira delas diz respeito ao bis in idem, fato já muito debatido no âmbito do Direito Digital, que em muito pode se assemelhar aos desafios vivenciados pelo Direito Ambiental. A questão aqui posta refere-se aos efeitos que apenas um ato de transgressão à Lei de Dados pode sujeitar. Por exemplo, um determinado vazamento de dados por uma empresa, pode levar a quais reflexos do ponto de vista jurídico?
O segundo ponto a ser analisado, amplamente relacionado com o objeto do presente artigo, diz respeito aos recursos hierárquicos. Do ponto de vista regulatório, a ausência de tais recursos, que transferem o poder decisório para estruturas externas a entidade, enfraquecem a autonomia decisória das instituições. No caso da ANPD, parece claro que tal controle, tenderá a ocorrer.
Diante do exposto a respeito das primeiras impressões da MP 869, de maneira ainda superficial, o que se observa é que apesar do aspecto positivo de ser criada efetivamente a ANPD, a opção por órgão em vez de autarquia especial, implica no enfraquecimento da instituição, que será por uma escolha legislativa o agente máximo de proteção de dados, mas não possuirá autonomia plena para exercer suas funções da maneira mais independente e adequada.
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[1] Art. 65. Esta Lei entra em vigor:
II – vinte e quatro meses após a data de sua publicação quanto aos demais artigos.”
[2] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-criacao-da-autoridade-nacional-de-protecao-de-dados-pela-mp-no-869-2018-29122018.
[3] Art. 55-J. Compete à ANPD:
XIII – realizar consultas públicas para colher sugestões sobre temas de relevante interesse público na área de atuação da ANPD;
[4] https://www12.senado.leg.br/cidadania/edicoes/300/o-que-sao-as-audiencias-e-consultas-publicas.
[5] Idem.
[6] http://www.anatel.gov.br/consumidor/consultas-e-audiencias-publicas.
Por Bruno Feigelson, Luiza Caldeira Leite Silva
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